segunda-feira, 18 de julho de 2016

6 anos!!!

E essa é semana de comemorar mais um aniversário do blog! Um espaço que começou como “válvula de escape” das obrigações do cotidiano, mas que foi crescendo, se consolidando, e agora completa 6 anos de publicações ininterruptas!

Quero agradecer imensamente a todos os leitores e leitoras: quem acompanha rotineiramente, ou apenas de modo esporádico, a quem comenta, fazendo elogios, críticas, sugestões, quem eventualmente usa o blog como fonte para reflexões ou por lazer... De coração, muitíssimo obrigado! Vocês não têm ideia de como é importante para mim o retorno daquilo que publico. É o combustível necessário para seguir em frente.

Grande abraço e vamos para mais um ano!

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Heidegger e a "destruição" da metafísica

Via de regra, os estudiosos de Heidegger dividem seu pensamento em duas grandes fases. Uma primeira até o final da década de 1920, sintetizada em sua obra magna, Ser e tempo, e outra, que se inicia com a preleção O que é metafísica, de 1929, e se estende até sua morte, em 1976. Em comum, ambas têm como pano de fundo aquela que Heidegger considera ser a questão fundamental a filosofia: a questão sobre o sentido do ser.

A questão do ser, die Seinsfrage, é pensada por Heidegger à luz de uma “destruição” (Destruktion) ou “desconstrução” (Abbauen) de todo o pensamento metafísico ocidental. Para compreendê-la, é preciso inicialmente distinguir duas acepções do termo ser. Há o verbo ser, empregado no sentido de existir (ser vermelho, ser mesa, ser mulher, se etc.), e o substantivo (um ser vivo, um ser humano, um ser divino etc.). Heidegger emprega o vocábulo ente (Seiende, no alemão) para esta última acepção, e deixa a palavra ser (Sein) exclusivamente para a primeira. Todo ente é, está presente, existe. Mas, todo ente tem um ser: o ser da mesa, o ser da cadeira, o ser do homem etc. Heidegger denomina diferença ontológica essa distinção entre ser e ente.

À luz dessa tese, Heidegger observa que o pensamento filosófico consolidado após Platão e Aristóteles, progressivamente desrespeitou essa diferença, “esqueceu o Ser”, tratando-o como ente, objetificando-o. Por exemplo, se me pergunto “o que é essa mesa?”, posso fazer um inventário de todos os seus predicados: é retangular, é de madeira, é marrom etc. Contudo, a soma desses predicados não é capaz de dar conta do que é esse “é” da mesa. O ser da mesa ultrapassa essa soma e, ao mesmo tempo, não é nenhum desses predicados. Por isso, Heidegger vale-se da construção alemã Es gibt  para indicar o Ser. No português corrente, traduzimos essa expressão por “há”. Es gibt etwas hier, por exemplo: “há algo aqui”. Mas, a rigor, a expressão alemã indica um “dá-se” (es é um pronome pessoal indefinido, análogo ao it inglês, e gibt é a conjugação da terceira pessoal do singular verbo geben, “dar”). Literalmente, portanto, es gibt significa: “algo se dá”. Assim, es gibt einen Tische, é, em português corrente, traduzido como “há uma mesa”. Mas, seguindo a indicação de Heidegger, seria preciso traduzir como “algo se dá uma mesa”. E o que seria esse algo? O Ser. O Ser dá-se uma mesa, isto é, torna-a presente, aqui, diante de mim, ao lado da parede etc. Pelo pensamento, eu acolho esse “dar-se” do ser.

Contudo, convém sublinhar: o ser heideggeriano não é a “coisa em si” inapreensível de Kant, o “Espírito” hegeliano, ou a “vontade de poder” de Nietzsche. Todas essas construções, para Heidegger, são indicativas da tentativa de tornar o ser um ente. As coisas não “escondem” nada atrás de suas aparições, como observa o mestre intelectual de Heidegger, Husserl, pai da fenomenologia. As coisas são o que são em sua aparição. O Ser é aquilo que torna as coisas presentes e se revela por essas coisas – é ser do ente –, ao mesmo tempo em que não se confunde com elas. Nesse sentido, o Ser não é, é Nada (Nichts).

Ora, é esse paradoxo que, na visão de Heidegger, os primeiros filósofos (os pré-socráticos, sobretudo, Parmênides e Heráclito) observaram e tentaram expressar em suas filosofias. Entretanto, a confusão oriunda da ambiguidade do termo ser (como verbo e como substantivo, como indicado no início), resultou no esquecimento do Ser. Assim, a distinção socrático-platônica entre o mundo sensível e o inteligível, a cadeia aristotélica de ser que culminava no “Primeiro motor”, o Deus tomista ou de Descartes, todas essas construções são indicativas daquele esquecimento, pois, nelas, o que se fez foi tomar o Ser como um objeto que servisse de Grund, solo, fundamento, ponto fixo a partir do qual o pensamento poderia se mover. Por isso, diz Heidegger, é preciso “destruir” toda a metafísica para recuperar o verdadeiro sentido do Ser.

Em grandes linhas, é esse agenciamento que ocupará o conjunto da reflexão heideggeriana. Nesse sentido, o que fundamentalmente distingue as duas grandes fases de seu pensamento é que, na primeira, o filósofo busca desvendar o sentido do ser por meio de uma investigação analítica do ente cujo modo de ser é, nele mesmo, uma indagação sobre o sentido do ser – o ser humano – ao passo que, na segunda, a reflexão é deslocada para a tentativa de desvelamento do Ser nele mesmo.

Expliquemos. Em Ser e tempo (Sein und Zeit), Heidegger assinala que o ser humano o único ente que pode questionar o ser. Para indicá-lo, porém, o autor rejeita o uso dos conceitos antropológicos tradicionais, bem como aqueles usualmente empregados pela tradição: eu, mente, espírito, alma etc. O ente que se coloca a questão sobre o Ser é Dasein, traduzido literalmente como “ser-aí”. Apenas Dasein pode compreender o Ser, indagar seu sentido. Como? Encontramo-nos no mundo cercados de coisas (isto é, de entes) que nos aparecem como estando “à nossa mão”. Dasein é o ente para o qual a totalidade dos entes aparece, para o qual um mundo. Dasein é ser-no-mundo (In-der-Welt-sein). Ao relacionarmo-nos com essas coisas, nos ocuparmos desse mundo e estabelecemos nossos possíveis. Através deles, isto é, da tentativa de realizá-los, podemos compreender nossa existência e, por conseguinte, o Ser. Por isso, a relação com o mundo é relação consigo mesmo e vice-versa. Para explicar essa relação, Heidegger a define como cuidado (Sorge). Nossa relação, a relação de Dasein com o mundo (e aí incluso si mesmo e os outros) é uma relação de cuidado.

Sem adentrar na “analítica existencial” de Ser e tempo (isto é, a explicitação das categorias através das quais é possível compreender Dasein) e seus temas palpitantes, como a angústia, a alienação e a morte, o que mais interessa aqui é demarcar uma segunda distinção capital, desta vez no plano dos entes (plano que Heidegger denomina ôntico). Todo ente, toda coisa, é. Apenas Dasein, o ser humano, existe. Existir é se fazer presente, em cada momento, “aí”, no mundo, em uma determinada situação. Heidegger nota que “existir” vem de ec-sistire, a partícula “ec” sinalizando um lançar-se no mundo, para frente, ser-fora-de-si-mesmo. Eis porque, para Dasein, fala-se em possibilidade – algo que não existe para os objetos em geral, que são o que são. Contudo, nem tudo é possível para a realidade humana. Ao existir, deparamo-nos, cada um de nós, com aquilo que Heidegger denomina de facticidade. Esta nada mais é do que o conjunto de circunstâncias que permite a cada indivíduo fazer determinadas projeções em detrimento de outras, alcançar certas realizações e não outras etc. Assim, como não é um dado inerte, a existência, para Heidegger, só pode ser pensada como uma interrogação permanente em torno dessa facticidade, desse lançar-se no mundo em busca de concretizar suas possibilidades. Portanto, Dasein ec-siste no tempo.

Por isso, o filósofo por vezes trata sua filosofia inicial como uma “fenomenologia hermenêutica”. Mas, diferentemente do emprego antigo do termo, a hermenêutica aqui não diz respeito à interpretação de textos, mas interpretação da própria existência e, através dela, do sentido do ser. O Ser, diz Heidegger, é aquilo que se revela em seu encobrir-se, aquilo que se encobre ao revelar-se. É abertura. Como a abertura entre as árvores numa floresta, que não é nem uma árvore em particular, nem seu conjunto, nem o solo, nem o céu etc., mas é aquilo pelo qual a floresta se apresenta. O ser é ele mesmo. Ser ele mesmo, é ser essa abertura, é Es gibt mencionado no início, e, portanto, é ser Nada. O Nada pelo qual as coisas positivamente podem ser, existir. O “dar-se” do ser é, enfim, temporal. Quer dizer, o tempo é a condição sem a qual não existe o ser, desde que este seja entendido a partir do ser do ente que se pergunta sobre o ser, isto é, a partir de Dasein, da realidade humana. Só no tempo é que Dasein se projeta, se ocupa e cuida do mundo e, com isso, pode trazer à luz esse mistério do Ser.

Na segunda fase de seu pensamento, Heidegger desloca sua atenção para apreender a “Verdade do Ser”. O ser, como dito, é um processo de ocultar-se e revelar-se. Por isso, sua verdade não pode ser pensada ao modo tradicional, como “convergência do pensamento e da coisa”, típico da metafísica a ser combatida. Afinal, o Ser não é coisa. Com efeito, a “verdade do Ser” é aletheia, termo grego que, em sentido literal, significa “não-esquecido” ou “descoberto”. A verdade do ser é anunciada pelo Ser. Por isso, o Ser é linguagem, e o ser humano é o guardião da verdade do Ser, o responsável por atender seu apelo e explicitá-la. É pela linguagem, não obstante suas limitações intrínsecas, sobretudo a poesia, que o Ser revela-se em seu próprio ocultamento.

Para além da tecnicidade do vocabulário heideggeriano, e de certo misticismo nele e nesse modo de tratar o Ser, há um desdobramento ético-político dos mais interessantes (nada a ver, sublinhe-se, com as relações do autor com o nazismo, o que é outra história) no modo como Heidegger lê a história da filosofia – ou seja, a formação da própria racionalidade ocidental – enquanto “esquecimento do ser”. Ele se encontra presente no entrecruzamento da “objetificação” do ser com o domínio da técnica na modernidade, o que conduz, no entender do filósofo, a uma existência alienada, inautêntica, típica de nossa era, e que tem importantes pontos de convergência com a tematização da alienação em Marx. Contudo, dada sua extensão, em breve tentarei dedicar outro post exclusivamente a essa questão.