segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O finito e o infinito: considerações sobre Deus, a morte e o sentido da vida - parte II

Cena do filme O sétimo selo
Como dito na primeira parte deste post, pensar em nós como uma simples parte produzida (e destruída) pelo universo em nome de seu próprio processo de existência conduz aos problemas da morte e da vida humanas. E, aqui, poderia invocar dois outros longas-metragens, ambos do diretor sueco Ingmar Bergman, que ilustram bem algumas hipóteses oriundas daquela perspectiva: Morangos Silvestres e O sétimo selo.

Com efeito, do prisma que tento adotar, os dois filmes se complementam: no primeiro, o professor de medicina Isak Borg, em viagem para receber um prêmio pelos cinquenta anos de carreira, revive momentos marcantes de sua vida, ao mesmo tempo em que é atormentado pela iminente da morte. No segundo, um cavaleiro medieval, voltando das Cruzadas, em plena época da Peste, se depara com a Morte (encarnada). Na esperança de encontrar um sentido para sua existência e compreender Deus, o cavaleiro propõe um jogo de xadrez com a Morte que, enquanto durasse, prolongaria sua vida, permitindo-lhe uma última chance de realizar aquela procura. O que é possível depreender de uma conjunção dos filmes de Bergman, dentre outras coisas, é a articulação entre a inexistência de um sentido a priori para a vida (a vida de Borg poderia ter sido outra, e ao relembrá-la, ele não parece tão contente com o rumo que ela tomou, especialmente em termos amorosos) com a inevitabilidade da morte (que faz questão de ressaltar que nunca perdeu, nem perderá, uma partida de xadrez); logo, que não haveria sentido em questionar o porquê de tudo – porque, efetivamente, não haveria qualquer sentido (e por que deveria haver?).

Em paralelo, remeto o leitor à série de TV norte-americana House M.D., terminada em 2012, mas integralmente disponível no Netflix. Ao tentar – e frequentemente conseguir – desvendar mistérios médicos através de diagnósticos diferenciais, o misantropo Dr. House, ao mesmo tempo em que se vê frequentemente afrontado pela morte em seu aspecto mais vertiginoso (“espiritual”, poderia se dizer), obriga sua equipe a tratar os pacientes de modo estritamente objetivo, a ponto de reduzi-los a uma série de reações físico-químicas cientificamente explicáveis – e que House tenta, a todo custo, prolongar. Essas duas situações concorrentes, que causam uma série de conflitos entre House e seu staff, ilustram certo modo de abordar o problema da relação de nosso “interior”, (consciência, alma, espírito etc.) e nosso “exterior” (o corpo). Conceitualmente, essa abordagem se encontra referenciada na perspectiva dualista (alma e corpo como duas substâncias antagônicas), que tantas linhas custou à Filosofia desde Descartes, mas que, não por acaso, já havia sido tematizada, séculos antes, por Santo Agostinho. Não por acaso porque, da perspectiva cristã, afirmar aquele dualismo é imprescindível. Alma e corpo devem ser dois elementos distintos, pois, enquanto a alma é a fonte de uma possível salvação, o corpo é um obstáculo à comunhão com Deus, sendo a fonte primordial de todos os pecados. Assim, a transcendência divina se comunica exclusivamente com a alma. O corpo físico está destinado a desaparecer, mas o espírito, se salvo, seria agraciado com uma vida eterna.

No entanto, se recusarmos a hipótese de um Deus transcendente (logo, não havendo nada a que imputar o “pecado” ou a “salvar”) esse dualismo também perde sua função. Isso, porém, não obrigaria a optar entre as alternativas de que somos seres exclusivamente materiais ou exclusivamente corporais. Na verdade, poderíamos considerar que somos ambos ao mesmo tempo, isto é, que consciência e corpo coexistem em uma relação de reciprocidade mútua, sem privilégio ao polo interior, como defendem as filosofias pós-cartesianas ou as religiões monoteístas. Quer dizer, talvez sequer seja possível, como Merleau-Ponty insinuava, separar, ainda que analiticamente, consciência e corpo...

Mas, ainda que se recuse a opção cartesiana de uma separação absoluta entre aquelas duas substâncias que comporiam o ser humano, me parece inegável que ela ilustra uma dificuldade prática. Com efeito, entendo que, se estivéssemos certos daquela separação, isto é, da possibilidade de salvação da parte mais importante de nós, talvez fossemos mais dispostos a pensar no sentido da vida e tivéssemos menos receio de abordar a morte. Contudo, como se trata de uma questão de fé, tão logo começamos a meditar sobre estes assuntos, sentimos certo incômodo. Não é casual, me parece, que a maioria das pessoas, consciente ou inconscientemente, fuja desse tipo de reflexão, considerando-a estéril (o que, dentre outros motivos, pode ajudar a explicar a impopularidade da Filosofia...).

Assim, poderíamos supor que essa imbricação mútua de alma e corpo, matéria e consciência, é o que ao mesmo tempo motiva e dificulta abordar as questões sobre e vida e morte que, por exemplo, este texto trata. Com efeito, para a ciência, não há dúvida de que compartilhamos a matéria, inclusive em nossos corpos, com todo o restante do universo. Somos, como disse no post anterior, poeira estelar, tendo, ipso facto, uma relação umbilical com tudo que nos cerca. Ao mesmo tempo, porém, essa relação se mostra desoladora. Pois, o fato de sermos conscientes de nossa pequenez, sugere que pudéssemos ser algo mais do que “caniços pensantes”, como definia Blaise Pascal.

É claro que, por termos consciência dessa insignificância, procuramos contorná-la. Via de regra, utilizando nossa imaginação (mitos, religiões, lendas e crendices em geral). O próprio pensador francês valia-se deste paradoxo para justificar sua “aposta” na fé cristã. Entendo se tratar de um movimento quase natural, espontâneo: seria necessário que tudo isso, a vida, a morte, a dor e o sofrimento, fizessem algum sentido! Raramente paramos para pensar que talvez o faça, mas apenas do ponto do vista do Todo, como sugeria Hegel. No século XX, a física quântica ensinou que a supressão de um único átomo destruiria, de imediato, todo o espaço-tempo universal. Por isso, como já havia observado Lavoisier, “na natureza nada se perde, tudo se transforma”. Entretanto, incomoda-nos pensar que somos apenas parte de uma engrenagem muito maior, e que nosso desaparecimento é mesmo um ponto final em nossa existência tal como a concebemos. Ou seja, que a morte de nosso corpo servirá para dar nascimento a outro e assim sucessivamente, sem privilégios, sem cerimônias e, sobretudo, sem vida em outro plano. E que isso, afinal, seria a fria letra da lei de tudo. Ou, novamente parafraseando Hegel: pensar que o particular, o finito, simplesmente é dissolvido no universal, no infinito, o único que realmente é. Esta seria sua perfeição.

Para a maioria, essa tese é inaceitável. Confesso que, diante da morte de minha avó, mencionada no início, gostaria de refutá-la também. Pois, o que me fez mais sofrer neste caso, menos do que seu falecimento (que, obviamente, doeu bastante, e doeria em qualquer circunstância, dada nossa proximidade afetiva), foi a impossibilidade de dizer um adeus. Será possível que nunca mais voltarei a vê-la? Essa é a pergunta que todos fazemos quando alguém querido nos deixa. E, confesso, é triste pensar que a resposta pode ser afirmativa – eventualmente insuportável. De fato, não há como negar o conforto que traz a fé em uma vida futura, especialmente nos momentos de perda, bem como na da companhia divina, sobretudo quando estamos em dificuldades. Contudo, essa resposta, inicialmente frustrante, poderia positivamente nos abrir a vivenciar o mundo, a nossa existência, nossa relação com os outros e com nosso único e conhecido destino (a morte), de outro modo – um modo, talvez, menos servil e mais saudável para nós mesmos.

Em outros termos, seria preciso verificar o que ganhar fazendo um percurso no sentido contrário do habitual. Ou seja, supondo que a vida nesse pale blue dot (como Carl Sagan definia o planeta Terra) seja tão somente uma manifestação mínima da grandiosidade de um universo espaço-temporalmente infinito. Vivemos em um pequeno planeta, que orbita ao redor de uma pequena estrela, em uma pequena galáxia, em um ponto qualquer de um cosmos mais vasto do que qualquer mente é capaz de supor. E, mesmo neste planeta, somos apenas uma das milhões de espécies que existem ou existiram por aqui (não apenas animais, mas também vegetais, minerais etc...). Fazendo um parêntese pessoal, lembro-me, aqui, de uma frase de minha esposa, no alto da Torre Eiffel, em Paris, ao olhar para os transeuntes lá embaixo: “olha como daqui de cima as pessoas são pequenas, todo mundo fica tão insignificante. Como pode, por exemplo, essas pessoas insignificantes acabarem com nosso dia?...” Se a alguns metros do solo já temos essa percepção – quer dizer, em minha opinião, essa verdade –, imaginem diante da imensidão do universo! Literalmente, para parafrasear Sartre, não somos nada, ainda que muitos pensem o contrário...

Nesse sentido, aceitar a morte como parte da Vida (em maiúsculo, porque não se trata apenas da nossa vida, mas da “vida” do próprio universo enquanto força que tudo rege), aceitar que somos uma ínfima parte de um todo, que estamos intimamente vinculados a tudo o que existe e que, portanto, não somos seres privilegiados, e que tampouco nossa existência estaria sendo guiada por alguma vontade transcendente que um dia viria definitivamente em nosso socorro, poderia nos liberar para experimentar essa conexão imanente entre nós e o todo, para desapegarmo-nos das coisas inúteis (preocupações com dinheiro, objetos, títulos etc.), e vivermos a vida em sua plenitude, enquanto temos essa unica oportunidade. Lembro mais uma vez de Sêneca: “não temos uma vida breve, mas fazemos com que seja assim”. Isto é, perdemos tempo de vida para ganhar coisas que nos tiram a vida. Paradoxal, não?

Talvez seja por isso, pensando numa analogia lúdica, exclusivamente pessoal, é que o lema “rock and roll all night and party every day”, da banda de rock KISS, me tocou desde a primeira vez que o ouvi. Independentemente de seu sentido literal, o que ela (me) sempre me transmitiu é a ideia fundamental de que é preciso aproveitar a vida! Isso, vale dizer, não implica necessariamente em abraçar o puro e simples hedonismo (ou a completa resignação ou niilismo). Acima de tudo, significa assumir a brevidade de nossa existência não como algo a se lamentar, mas como motivo para não desperdiçá-la ou não hipotecá-la em nome de uma vida futura completamente intangível (Dr. House mais uma vez me vem à mente).

Ao mesmo tempo, porém, como seres conscientes, é imperativo notar que nossa atual condição socio-histórica bloqueia ou dificulta para a maioria aproveitar a vida naqueles termos. Também por isso que, para mim, o comunismo, superação do “reino da necessidade” e instauração do “reino da liberdade humana”, sempre fez tanto sentido enquanto modo de organizar nossa vida social. É que, segundo o interpreto, Marx visava, acima de tudo, demonstrar a existência de condições (materiais, históricas, “espirituais”) de nos livrarmos de um modo de existir que privilegia entidades abstratas que nos dominam (o dinheiro, o capital, a propriedade privada etc.), e vivermos de modo a valorizar aquilo que há de mais importante: a própria vida, nossa e de outrem – e repito, sem a expectativa de que ela continuaria em algum momento futuro em outra dimensão. Se não há criação, transcendência, salvação post mortem, o único sentido da existência humana seria aquele que nos damos aqui e agora, como frequentemente sublinhava Sartre. Numa palavra, tornamo-nos livres; logo, igualmente responsáveis por tudo o que fazemos.

Ao fim e ao cabo, se o que foi tramado nestes dois posts tem alguma validade, todos os elementos se inter-relacionariam positivamente. Um novo modo de pensar e encarar a vida – consequentemente, de encarar a morte –, uma nova forma de interagirmos enquanto seres sociais, uma nova relação entre finito e infinito, ser humano e universo (ou Deus, se o leitor desejar manter a denominação religiosa)...

Não nego que esta tese pode provocar dificuldades. Acima de tudo, certo desamparo existencial. Mas, quem sabe, esse desconsolo não resulta apenas de uma expectativa que, criada para resolver um problema, promove outros? Enfim, como alertei desde o início, tratava-se apenas de uma meditação livre, uma divagação. Espero, em outras oportunidades, conseguir desenvolver algumas “pontas” deste texto para além desta epifania – como a questão ética que ele implica, a política, ou mesmo, me aprofundar um pouco mais nesse agenciamento entre o finito e o infinito. Por ora, apenas espero que este texto possa despertar alguma reflexão em quem o acompanhou até aqui.

O finito e o infinito: considerações sobre Deus, a morte e o sentido da vida - parte I

Antes de começar, convém fazer um alerta para não desapontar o potencial leitor: este texto nada mais é do que o fruto ainda verde de um exercício reflexivo livre. Por isso, em alguns momentos ele talvez se mostre mais confuso ou obscuro do que o recomendado, ou menos rigoroso do que o necessário. Espero, no entanto, que essas falhas não prejudiquem a argumentação central, posto que, ao fim e ao cabo, elas se originam essencialmente do caráter inacabado das linhas a seguir. Quer dizer, meu objetivo aqui não é assinalar respostas, mas tão somente esboçar uma meditação sobre os temas em tela a partir da mescla entre algumas ponderações filosóficas e experiências pessoais (eventualmente intransmissíveis para outrem).

Nesse sentido, um preâmbulo acerca de algumas daquelas experiências pode ajudar a situar o fio condutor dessa discussão. Desde a adolescência, ora em maior, ora em menor intensidade, me questiono sobre aquilo que poderia se definir como “a posição humana diante do universo” – ou, para tomar como referência o cabeçalho deste post, a relação entre finito e infinito. Em certo sentido, poderia dizer que esta é a questão de fundo das preocupações que me conduzem pela seara filosófica, inclusive no tratamento de temas sociais ou políticos, como tentarei mostrar mais adiante.

Tendo, já a partir daquele período, lançado dúvidas sobre a coerência das explicações religiosas tradicionais – identificando contradições nas hipóteses da criação divina ex nihilo do mundo, e da observância e proteção dos seres humanos, por esse mesmo Deus, em sua lida cotidiana – me encaminhei para leituras relativas ao funcionamento do universo de um ponto de vista estritamente científico, procurando auxílio para pavimentar algum outro caminho. Por exemplo, já durante minha graduação, em paralelo às leituras obrigatórias de Ciências Sociais e aquelas que empreendia no sentido de transitar rumo à Filosofia (mais especificamente, ao existencialismo de Sartre), estudei com certo afinco os trabalhos de divulgação científica de alguns autores de mais fácil acesso para um iniciante – Stephen Hawking, Carl Sagan, Timothy Ferris e Isaac Asimov foram os principais.

Infelizmente, meus parcos conhecimentos em ciências exatas e naturais me impediam de avançar em demasia em suas teorias. Ainda assim, essas leituras foram extremamente proveitosas, já à época (estamos falando de meados dos anos 2000), para consolidar, agora razoavelmente amparado na ciência, certas intuições acerca do problema que viso tratar. Em especial, fornecia uma comprovação material da existência de uma relação intrínseca entre nós e o restante do universo, que me propiciou um ponto de apoio diferente daquele sugerido pelo cristianismo, por exemplo, para pensar a relação entre o finito e o infinito. Afinal, como Sagan sublinhava, toda a matéria que nos compõe é, basicamente, fruto da morte de antigas estrelas – o fenômeno chamado de “supernova”. Somos, literalmente, poeira estelar que, um dia, poderá servir de fonte para o início de um novo ciclo cósmico. “Todo novo começo vem do fim de outro começo”, disse, em outro contexto, o filósofo romano Sêneca. Desde aquele momento, porém, suspeito que essa afirmação seja válida tanto no ciclo existencial, quanto no vital, além do cósmico.

Sendo assim, tratar da relação ser humano/universo envolve se deparar com uma questão espinhosa para todos nós: a da morte. E, com ela, ato contínuo, a da vida – e de seu sentido. Confesso que, embora me dedicando ao estudo de filosofias da existência, o problema da morte, especialmente, como ela nos coloca de frente com o problema da vida, estava submerso há alguns anos. Não obstante, em 2013, morando na França, recebi a notícia da morte de minha avó materna, com quem tinha grande ligação. Desde então, essas questões voltaram a se fazer mais presentes e, admito, há tempos tenho tentado escrever algo a respeito. Não porque me vejo próximo do fim – espero que não! – mas porque, no final das contas, essa é provavelmente a questão humana por excelência. Questão profícua, portanto, para alguém que tenta se ocupar com reflexões filosóficas.

Aqui mesmo no blog, em alguns posts, tentei referenciar alguns aspectos envolvidos nessa discussão: por exemplo, tratando do modo como alguns filósofos pensam a morte, sobre a contingência, a "fenomenologia da vida" de Renaud Barbaras, bem como sobre o conceito de Deus na filosofia de Espinosa. Aliás, este último merece uma consideração especial.

Ali, dizia que, para Espinosa, Deus é “um ser imanente ao próprio universo. Quer dizer, Deus é o próprio universo, sua causa imanente, a substância absoluta que – forçosamente infinita (se fosse finita, teríamos de admitir a existência de uma outra substância que a limitasse), se exprime de infinitos modos. Deus sive Natura, Deus ou Natureza: não há distinção entre ambos, mas a própria Natureza é Deus na medida em que é a expressão (também temporalmente infinita) de Seus infinitos atributos. Por conseguinte, não há relação de servidão entre o homem e Deus, pois não há criação, no sentido teológico do termo. Cada um de nós é resultado do processo de autoprodução de Deus: exprimimos seu Ser e Ele existe através de nós”.
  
Essa concepção soa perfeitamente articulável com a perspectiva científica de uma ligação material entre todos os seres mencionada anteriormente. Em minha opinião, Espinosa, ao propor a tese de uma relação imanente entre o finito e o infinito, entre o particular e o universal, entre o ser humano e a totalidade do universo (ou Deus, no vocabulário da Ética), forneceu uma fonte extremamente fecunda para balizar a discussão filosófica sobre o divino para além das propostas religiosas tradicionais. Se aceitamos a hipótese de um Deus transcendente, acolhemos, no mesmo gesto, a ideia de criação, bem como uma relação servil entre criatura e criador. A hipótese imanentista rompe essa lógica. Inclusive, permite assimilar algo como o “divino” ao Todo (e não a cada parte isolada, como em uma hipótese panteísta em sentido estrito, que par muitos é o caso de Espinosa).

Nesse sentido, cumpre lembrar que mais tarde, pelo mesmo caminho – e em que pesem as profundas diferenças entre ambos –, segue o pensamento de Hegel, para quem tudo o que existe (a Natureza e o Espírito) são manifestações imanentes da Ideia Absoluta (ou Espírito, em outra acepção). Com efeito, tanto em uma filosofia quanto em outra, o que se destaca é a recusa de uma divindade transcendente – logo, do conceito de criação, tal como exposto, por exemplo, no livro do Gênesis – em nome da compreensão de um processo de autoprodução imanente da substância infinita (Espinosa) ou do Espírito infinito (Hegel). Nos dois casos, encontramo-nos intimamente vinculados ao Todo, na medida em que não nos afastamos dele, mas somos parte dele, tanto quanto tudo o mais que existe – inclusive os outros seres humanos. Mais uma vez: independentemente de tudo o que afasta Espinosa de Hegel, bem como as eventuais críticas que se possa fazer a seus sistemas, é o agenciamento imanente entre finito e infinito que me chama a atenção.

Em consonância com este horizonte (aqui propositalmente esboçado de modo simplificado ao extremo), alguns fatos cotidianos, típicos do já findo período de férias, me instigaram a finalmente escrever essas linhas. Por exemplo, alguns filmes e séries que vi (ou revi) ente o final do ano passado e o início deste ano, e que, em alguma medida, permitem um diálogo com as preocupações filosóficas supracitadas.

Star wars
Em relação aos primeiros, começo pelo universo ficcional de Star Wars. Independentemente da imensa dose de fantasia, ou de questões comerciais típica de um blockbuster hollywoodiano, dois elementos (dentre outros) me atraem na saga: a percepção de um universo muitas vezes desconhecido, porque infinito; e a ideia de uma “Força” que transpassa esse universo e seria responsável por seu equilíbrio e harmonia. Com efeito, é como se os filmes de George Lucas despretensiosamente provocassem (ao menos, para mim) questionamentos decorrentes daquele horizonte inicial: não haveria coisas que podem estar acontecendo, ou que aconteceram, em partes infinitamente distantes da Terra, da qual não temos, e possivelmente nunca teremos, o menor conhecimento? Penso em relações entre seres, não necessariamente humanos ou humanoides, isto é, seres complexos ou com “poderes especiais”. Contudo, se eventualmente descobertas, tais relações poderiam ser reveladoras não apenas de que “não estamos sozinhos”, mas, mais importante, de que não gozamos de nenhum privilégio – como as grandes religiões precisam admitir. Isso porque, tudo o que existe no cosmos seria apenas uma emanação diferente da mesma força que coordena o universo, isto é, produto de seu próprio processo de efetivação. Vale lembrar, nessa direção, que na ficção de Star Wars, por exemplo, seres humanos convivem, sem regalias, com outras formas de vida, naturais ou artificiais.

É verdade que, inspirado no ateísmo militante de Carl Sagan, alguém poderia retrucar dizendo que essa força – “emocionalmente frustrante”, como ele definia – poderia ser assimilada à gravitação universal. É a gravidade, afinal, que mantém o universo em funcionamento, definindo a órbita dos corpos celestes, a formatação das estrelas, a produção dos elementos químicos etc. Com isso, perderíamos o lado “místico” que, para conservar a analogia, a “Força” de Star Wars carrega (expressa, por exemplo, na profecia do “escolhido”). Destarte, tudo se reduziria a uma força física, facilmente explicada em termos matemáticos? Não sou convicto do acerto dessa posição extrema, conquanto reconheça sua legitimidade. De qualquer modo, a ideia da existência de uma “força” que rege o universo, mas que não se confunde com o conceito típico de Deus e sua necessária transcendência (Substância espinosana? Espírito hegeliano? Gravitação?) me soa assaz provocante...

No próximo post, tentarei desenrolar um pouco essa trama em direção à questão da vida e da morte de uma perspectiva mais “existencial”.