sexta-feira, 31 de março de 2017

O “bom mocismo” ou o triunfo do cinismo

Em entrevista publicada ontem pela Folha de SP, o apresentador Luciano Huck diz que é hora de sua geração “ocupar o poder”. Filiado ao PSDB, Huck afirma ainda que “não importa” saber se houve golpe ou não, e acrescenta que enxerga em FHC alguém com uma “mente moderna”.

Ao mesmo tempo, com apenas três meses de mandato, o prefeito de SP, o também tucano João Dória, já é inacreditavelmente apresentado/vendido/empurrado como um “modelo de gestão”, cacifando-se para voos mais altos já em 2018. Se não à presidência (Huck parece um nome mais “nacional” e mais “popular”), ao governo de SP - onde seu partido, como se sabe, é capaz de eleger qualquer pato manco como governador. Do ponto de vista do marketing eleitoral, nomes como Huck e Doria poderiam, em um trabalho conjunto, encarnar a “rejeição à velha política” (como o próprio Doria já fez na última eleição para prefeito), sem a fragilidade do ar “sonhático” de Marina e seus seguidores, e sem o caráter, digamos, tosco, de um Bolsonaro.

Numa palavra, seria uma espécie de chapa de “bons moços”: aqueles que, em outros tempos (talvez, nem tão outros), eram definidos como “bons partidos”. Agora, porém, suas qualidades não se mostrariam mais em sua versão matrimonial, mas política. Modelos de self-made men, outsiders que abrem mão do sucesso em suas carreiras para servir a uma “causa maior”. Tal qual Donald Trump nos EUA.

Mas, como ninguém hoje quer ser associado ao presidente norte-americano, pode-se dizer que este seriam os “Trumps do bem”. Nessa linha, poderiam entrar ainda o ex-técnico da seleção brasileira de vôlei Bernardinho, no RJ (também filiado ao PSDB), e, quem sabe, com algumas ressalvas (nada que uma boa propaganda não resolva, e ele é inegavelmente competente nisso) o promoter de festas/bon vivant ACM Neto, na Bahia. Por fim, não se poderia deixar de mencionar aquele que talvez seja o maior protótipo brasileiro deste novo perfil: Roberto Justus, do PMDB, que também já se dispôs publicamente a se apresentar para o “sacrifício” de “salvar o país”.

A eventual concretização deste cenário representaria o triunfo do bom mocismo em sua faceta mais cínica; a derrota da política, no sentido forte do termo, em favor do puro marketing. A princípio, não acho que seja o mais provável. Entretanto, na era da pós-verdade, do instanteneísmo da imagem, todos os nomes acima têm credenciais suficientes para se impor no “mercado de votos” (que é como, em nossa era, e não por acaso, se entende o processo eleitoral).

Por isso, embora, repito, não ache o mais plausível, tampouco imagino que devesse causar surpresa em alguém se, a partir de 2018, a política brasileira deixasse de ser operada nos corredores de Brasília para ser decidida, entre um champagne e outro, em resorts de luxo espalhados por nossa costa. Tudo ao vivo, na TV, quem sabe, com direito a “participação” do telespectador.

sábado, 25 de março de 2017

Elton John - Tiny Dancer

Sir Elton John completa hoje 70 anos como um dos maiores nomes da música pop. Quem nunca se deliciou, curtiu, se apaixonou ou namorou ao som de uma de suas canções?

Essa versão de 1971 de um de seus clássicos, Tiny dancer, chama a atenção pela simplicidade do arranjo: apenas Elton, seu piano, e sua magia.

Happy birthday, Sir!!!


quarta-feira, 15 de março de 2017

Uma lição de Espinosa sobre a democracia

No longínquo ano de 1670, o holandês Baruch de Espinosa, primeiro grande filósofo moderno a defender abertamente a democracia como melhor forma de governo, dizia o seguinte em sua obra derradeira, o Tratado político: “Os homens estão necessariamente submetidos a emoções. (...). A Razão pode bem conter e governar as emoções, mas (...) o caminho ensinado pela Razão é muito difícil; aqueles que, por isso, se persuadem ser possível levar a multidão, ou os homens ocupados com os negócios públicos, a viver segundo os preceitos da Razão, sonham com a idade de ouro dos poetas, isto é, comprazem-se na ficção. Um Estado cuja salvação depende da lealdade de algumas pessoas e cujos negócios, para serem bem dirigidos, exigem que aqueles que o conduzem queiram agir lealmente, não terá qualquer estabilidade. Para poder subsistir será necessário ordenar as coisas de tal modo que os que administram o Estado, quer sejam guiados pela Razão ou movidos por uma paixão, não possam ser levados a agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral. E pouco importa à segurança do Estado que motivo interior têm os homens para bem administrar os negócios, se de fato administrarem bem”.

Há mais de uma década, mais precisamente desde 2005, tenta-se vender a tese (com sucesso, diga-se) de que, no Brasil, o mal, a corrupção, o “agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral”, se concentraria principalmente em meia dúzia de líderes de um determinado partido político, cuja engenhosidade transgressora teria, inclusive, corrompido outros partidos e cidadãos, irresistivelmente arrastados nas engrenagens do “projeto criminoso de poder” daquele bando delinquente. Ou seja, quase três séculos e meio depois das palavras de Espinosa, ainda há quem se deixe levar – ou seja quase que forçado a acreditar – por aquela ficção, que ao confundir as esferas pública e privada, rezava ser possível garantir a boa administração do Estado apenas pela boa vontade de seres que, surdos às suas paixões, seriam qualquer coisa, menos humanos. Anjos, talvez, como diria Kant, mais tarde. E, claro, se um dos lados é o mal, aqueles que o denunciam seriam a encarnação do próprio bem. Os anjos da boa vontade. Ou, numa linguagem mais afeita aos nossos tempos, os “gestores”.

Digo tudo isso porque, se há algo de positivo no circo armado pela Lava Jato, mais particularmente nas tais listas de denunciados do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, independentemente do desfecho que terão (e não há porque não crer que os desfechos não serão equânimes, mas sopesados pela coloração partidária do acusado), é a de mais uma vez ilustrar que vícios e virtudes não são monopólio de pessoas ou grupos específicos. Também é a de tornar ainda mais patente que, não é o auto-declarado caráter virtuoso de alguns iluminados – “mitos” ou empresários “a-políticos” – mas, apenas uma profunda reforma de todo o sistema político, a partir da qual o Estado seja ordenado “de tal modo que os que o administram não possam ser levados a agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral” independentemente de suas motivações pessoais, como hoje ocorre, que pode garantir a efetivação da democracia, isto é, o triunfo da vontade pública sobre o poder dos interesses privados. E, por fim, mas não menos importante: que todo o processo que culminou na deposição de Dilma Rousseff, e hoje se intensifica com o ataque frontal a direitos adquiridos, supostamente insustentáveis diante do também suposto desmantelamento do orçamento federal por conta da corrupção, não passou de uma gigantesca farsa.

sexta-feira, 3 de março de 2017

A perda da alteridade e as redes sociais

Um dos pontos altos da filosofia de Hegel é a forma pela qual ele estabelece um vínculo ontológico entre a ipseidade – o ser-si-mesmo – e a alteridade – o outro-que-não-eu. Particularmente em sua Fenomenologia do Espírito, o filósofo sublinha a sina dolorosa da consciência que, para superar a pobreza de seu estado natural em direção ao saber, lida a todo instante com sua própria negação. Segundo Hegel, todo progresso é dialético porque inevitavelmente marcado com o sinal do negativo: não há conhecimento possível sem que experimentemos o outro, o diferente.

Assim, o trajeto da consciência hegeliana se caracteriza por um permanente arrancar-se de si mesmo, que só é possível pela intervenção da alteridade. Sem contato com o outro, ou, mais precisamente, sem a experiência do outro (no duplo sentido do genitivo, isto é, como “experienciar” o outro e sem aquilo que o outro traz a mim), nada haveria, senão uma consciência ensimesmada e, por definição, estanque.

O advento da globalização neoliberal insinuava, dentre outras coisas (ao menos, de acordo com seus ideólogos), a construção de um “mundo sem fronteiras”, “multicultural” e no qual, portanto, a alteridade seria vivenciada em seu mais profundo sentido. Passadas algumas décadas desse fenômeno, porém, o que se vê é exatamente o oposto: a solidificação de grupos cada vez mais autocentrados, sem qualquer abertura a uma experiência real – naqueles termos consagrados por Hegel – do outro. Esse fenômeno, cujas consequências políticas são visíveis no recrudescimento de discursos ultranacionalistas, xenófobos etc., se deixa transparecer cotidianamente nas “redes sociais”.

Quando surgiram, novamente, havia a expectativa de que tais ferramentas pudessem se materializar como uma via de acesso ao outro, ao diferente, à opinião contrária, aos valores e formas de vida com os quais não estamos acostumados. Em pouco tempo, porém, o que se nota é que as redes criaram bolhas, dentro das quais nos movemos em segurança e que, por sua configuração, bloqueiam qualquer traço de alteridade. Com efeito, o aparecimento da divergência, inevitável no fluxo contínuo de informações digitais, não é motivo de crescimento ou progresso, de diálogo, de abertura ao novo. Antes, é principalmente motivo de reafirmação de uma identidade fechada. Não por acaso, a forma mais comum de tratar o outro, neste cenário, é pela via de sua exclusão, real ou simbólica. Isto é, pelo desejo de seu extermínio físico ou enquanto voz ativa. É o triunfo do ódio, ou seja, aquele desejo de eliminar completamente o outro – isto é, todos os outros, como diria Sartre.

Feito esse brevíssimo diagnóstico, resta estabelecer suas causas. Nos limites desse espaço, contudo, apenas uma indicação de um dos possíveis caminhos a seguir seria exequível. Aliás, ela já foi avançada em um texto que tive a oportunidade de publicar na “Coluna ANPOF” no ano passado, e reproduzido aqui no blog (leia aqui), e de cujo aprofundamento pretendo me ocupar no próximo período.

Trata-se do processo de ultrassubjetivação, delineado, dentre outros, por Pierre Dardot e Christian Laval, além de Franck Fischbach, que acompanha a afirmação da racionalidade neoliberal, deslocando a lógica da competição empresarial também para o âmbito da vida privada e da subjetivação. De um lado, esse processo visa reforçar o desligamento do indivíduo de qualquer vínculo efetivo com o mundo, em nome de sua constante mobilidade, mas, contraditoriamente afrouxando a construção de sua própria identidade. De outro, face à impossibilidade de se sustentar esse desligamento radical – na medida em que impede qualquer processo de subjetivação efetiva –, se fortalece aquilo que Immanuel Wallerstein denominou de “grupismo”. Ou seja, a resposta para o avanço de um individualismo radical – fruto da exacerbação daquela racionalidade competitiva, típica do meio empresarial – é a busca por um ponto de apoio que freie a instabilidade promovida pela ultrassubjetivação: este apoio é encontrado na formação de grupos que, por definição, constroem sua identidade a partir de uma resoluta oposição com seu outro.

Nesse sentido, as redes sociais favorecem o estabelecimento desse nexo interindividual, que surge como um amparo diante da extrema fluidez do mundo contemporâneo e sua lógica competitiva. Ao mesmo tempo, se essa hipótese é válida, a interiorização dessa racionalidade hiper-individualista, que inclusive precisa rejeitar qualquer traço de dor e sofrimento em nome da celebração da felicidade permanente (o “sucesso”), torna o “grupismo” um forte antídoto ao medo que inevitavelmente acompanha a experiência da alteridade. Assim, as redes apenas dão vazão a um temor cuja origem, antes de ser exclusivamente psicológica, é causada pela própria dinâmica social que põe os indivíduos em competição permanente contra todos (na impossibilidade de universalização do sucesso, o outro tende sempre a aparecer como uma ameaça potencial) e contra si (a ideologia do crescimento pessoal – este entendido como melhor adaptação às exigências do mercado – e consequente sucesso/felicidade).

O brilhante Umberto Eco, pouco antes de morrer, disse que as redes sociais deram voz a milhões de idiotas. Corroborando a tese do escritor italiano, pode-se acrescentar que o idiota da rede social o é, primeiramente, no sentido original do vocábulo: a pessoa fechada sobre si mesma, típica de nossa era. Enfim, o bloqueio à experiência da alteridade aparece como sintoma do desconforto causado pela exigência impraticável de uma competição radical, no qual os indivíduos se relacionam entre si enquanto inimigos. Seu resultado mais devastador é um esvanecimento da ipseidade em uma perda completa de qualquer sentido de empatia, solidariedade e humanidade. Um Eu que nunca é Nós, parafraseando Hegel, porque sequer chega a ser Eu.