segunda-feira, 29 de maio de 2017

Hegemonia às avessas: o "anti-comunismo" e o dilema da esquerda

Em seus escritos de juventude, Marx definia a religião como “sumário das lutas teóricas da humanidade”, uma “enciclopédia popular” que forneceria um conjunto de respostas prontas e acessíveis sobre a realidade. Dito de outro modo, a religião, de modo dogmático e sem avançar nos meandros do real, serviria de justificativa e consolo diante da miséria do mundo. Contudo, Marx entendia que a crítica da religião seria estéril se limitada à denúncia do que ele entendia ser aquela mistificação. Antes, era preciso dirigir a crítica filosófica à conjuntura na qual a religião podia desempenhar aquele papel “enciclopédico”. Fiz esse preâmbulo porque, em certo sentido, a direita brasileira logrou êxito, nos últimos anos, em disseminar uma espécie de “saber” que em muito remete ao entendimento marxiano da religião, se desprovido do lado sacro desta última. Trata-se de uma espécie de cartilha francamente contrária a quaisquer valores de esquerda, que fornece um anti-marxismo e um anti-socialismo tosco, a ponto de identificar, sem cerimônia, o PT (e demais partidos de esquerda, supostamente “braços” do primeiro), os governos Lula e Dilma e comunismo em uma única equação, uma espécie de síntese do mal.

Desnecessário ser de esquerda para saber que essa associação é, sob qualquer ponto de vista, insustentável. Entretanto, justamente por se tratar de um dogmatismo, sua fraqueza termina por ser sua força. Porque não penetra na realidade, mas se limita a uma aparência obscura, termina por justificar, por meio de associações arbitrárias, mas facilmente assimiláveis – ou seja, absorvidas sem exigência de reflexão. Assim, a cartilha da direita pode trabalhar com certo imaginário, historicamente sedimentado – aquele que associa comunismo, ditadura e pobreza generalizada – e transpô-lo para a realidade brasileira, na qual seu veículo de concretização seria o PT e seus líderes, sem necessidade de justificar as conexões que promove.

Esse tipo de procedimento não é exatamente uma novidade. O que é novo é que esse “manual anti-esquerda” foi incorporado – na melhor das hipóteses, ressoou com força – pela mídia corporativa do país, como parte de um projeto de auto-conservação (financeira e política). Mais ainda, essa mídia foi essencial em sua disseminação, construindo, desse modo, uma espécie de hegemonia às avessas: a locução adverbial aqui serve para indicar que, se o conceito de hegemonia consagrado pela tradição marxista pelas mãos de Gramsci (a ideia de uma reforma intelectual e moral capaz de consolidar uma visão de mundo alternativa) visava a transformação social, essa hegemonia se dá em sentido oposto. Bem entendido, não se trata apenas de conservar o status quo, isto é, reagir a novas mudanças, mas retroceder em direção a um passado no qual “o fantasma do comunismo” não existiria, ou, caso ameaçasse aparecer, era imediatamente sufocado em seu nascedouro (como na ditadura militar).

Agora, se poderia questionar como foi possível, ainda durante os governos petistas, que essa disseminação lograsse êxito. Para além de erros dos próprios governos e do PT, estabeleceu-se uma fratura, agora talvez mais evidente, entre o que se poderia chamar de parcela organizada da esquerda (aí inclusa sua intelectualidade) e uma massa difusa (serial, diria Sartre) que, ao mesmo tempo em que conheceu ganhos materiais no início de século, não avançou correspondentemente no âmbito da organização política e de valores coletivistas. Assim, tornou-se presa fácil daquele discurso precário, capilarizado pela grande mídia (e também, o que seria objeto para outra reflexão, das novas igrejas pentecostais). O recente estudo da Fundação Perseu Abramo sobre os valores da periferia de SP é claro a esse respeito (leia aqui).

Diante desse impasse, seria preciso refazer essa mediação. O PT, que nasceu com esse propósito, não parece ter forças, em curto prazo, a retomar este posto. Outros partidos de esquerda jamais conseguiram se posicionar nesse papel mediador, quase sempre fechando-se sobre si mesmos. Talvez, a única figura capaz de reconectar esses extremos, ou fazê-los dialogar minimamente, seja o ex-presidente Lula. Se essa percepção é válida, ela concentra uma parte do dilema da esquerda: não ter alternativa, se não recorrer a uma velha figura para poder se reerguer, figura essa que, como não bastasse seu desgaste natural, há tempos tem sido alvo contumaz de desconstrução por aquela mídia corporativa disseminadora do anti-esquerdismo. Ou seja...

Aliás, diante dessa reflexão, me lembro de uma frase certa vez proferida, vejam só, por FHC: “se Lênin fosse vivo hoje, ao invés de um partido, teria uma emissora de TV”. Uma vez na vida, concordo com o ex-presidente tucano. E acrescento: talvez o maior erro dos governos petistas tenha sido justamente não enfrentar de fato a oligopólio midiático brasileiro. O resultado está aí. Mas, sem maiores lamúrias, é preciso enfrentá-lo. Um caminho é tomar a sério o ensinamento de Marx e, antes de limitar a crítica apenas à indigência daquele risível discurso, é compreender as condições que o permitem prosperar e atacá-las. Para tanto, restabelecer aquela mediação entre o conjunto da esquerda (para além das divergências) e a massa que hoje serve de apoio ao “anti-comunismo”, é o passo primordial nesse momento.

sábado, 20 de maio de 2017

Sobre os últimos acontecimentos

O abalo político causado pela revelação do teor das delações dos executivos da JBS, na última quarta-feira à noite, ainda está longe de terminar. De um lado, um sentimento generalizado de que o governo acabou. De outro, um presidente (sic) que insiste em permanecer no cargo. Longe de pretender tecer maiores análises acerca de algo que, para muitos, eu incluso, segue ainda com obscuridades, alguns pontos merecem ser levantados para reflexão:

1-) Tal como ocorreu mês passado, quando da divulgação da delação da Odebrecht, muita gente, aí inclusos jornalistas experientes, se demonstraram “surpresos” com o que se descobriu. Evidentemente, os números da propina assustam. Igualmente, a naturalidade com que são relatadas as atividades criminosas. Mas, o que não deveria causar espanto, era o fato de que há uma confusão entre público e privado intrínseca a uma sociedade de tipo capitalista e que, no Brasil em particular, se agrava pela própria história de formação de nossas elites econômicas. A permanecer a maior fonte geradora de corrupção no país – o financiamento privado de campanhas eleitorais – o que teremos, no próximo período, é apenas a troca dos atores corruptores.

2-) É igualmente inacreditável que alguém se espante com o banditismo de Aécio Neves. Tanto quanto o fato de ele ainda continuar solto.

3-) Sempre se soube que Gilmar Mendes era um militante do PSDB travestido de juiz do STF. Mas, o que se revelou nos áudios divulgados nos últimos dias é ainda mais grave: se trata de um verdadeiro líder de bancada, coordenador do partido. É absolutamente chocante que não haja, a começar pelos meios jurídicos, um movimento pedindo o impeachment imediato de Mendes do Supremo.

4-) Toda essa movimentação de dinheiro fraudulento, para lá e para cá – da Odebrecht, da JBS, e de outras empresas que continuam interferindo na vida pública, sem que ainda tenham sido descobertas, e assim permanecerão – não despertou a atenção de nenhum órgão fiscalizador das instituições financeiras do país? Se um cidadão comum gasta 100 reais a mais do que o normal, seu banco fica imediatamente alerta. Mas, nesse caso, nada? Nenhuma denúncia, pedido de investigação, tudo normal? Por que será, hein?

5-) Mudando o lado do espectro político: mais uma acusação de que Lula e Dilma teriam contas no exterior – contas abertas pelo próprio delator, movimentada por ele, mas que seriam dos ex-presidentes. Qual a dificuldade em rastrear as contas, ou pegá-los em flagrante, como foi feito tão facilmente com Temer e Aécio? Ou seja, produzir provas efetivas, para além de retórica e obliquidades?

6-) Enfim, cada vez mais, fica claro que nenhuma dessas investigações visa prioritariamente o bem público. Trata-se de uma guerra de interesses, que talvez tenha ido mais longe do que se esperava. Nesse sentido, está se desenhando uma guerra entre Globo x Folha que, se confirmada, esconde muito mais sujeira do que o que se revelou até aqui. A questão é saber: quais são as motivações, as frações de classe, que se escondem por trás dessa briga? A questão se impõe, inclusive porque, independentemente do sucessor de Temer (se pela via indireta, mais provável, e que ambos os grupos defendem), seu maior interesse – a saber, a condução da política econômica e a realização das reformas – será conservado. Por que, então, essa cizânia no interior da burguesia?

7-) Aliás, para encerrar: não é estranho que Henrique Meirelles, ex-CEO da JBS, tenha dito que permaneceria no cargo mesmo se Temer renunciasse? Como ele pode garantir, de antemão, sua presença em um governo que ainda nem existe?

terça-feira, 2 de maio de 2017

Belchior - Como nossos pais

Meu primeiro contato com a música de Belchior foi há quase 20 anos. Se a memória não me trai, através de um tio materno, que me introduziu ao cantor cearense ainda na pré-adolescência, através da simpaticíssima Medo de avião. Contudo, após certo interesse, acabei sendo levado pelo rock inicialmente de modo dogmático, a ponto de desprezar completamente aquilo que se convencionou chamar de MPB. Felizmente, essa fase durou pouco tempo, e já ao redor de meus 16 anos, me reconciliei com o estilo. 

E foi, justamente, através de Belchior que percebi que a pretensa oposição entre MPB e rock poderia ser superada. Com efeito, enxergava nele uma espécie de versão local de Bob Dylan. Mas, não só:  a partir dessa época, suas letras começaram a me tocar mais fundo. O cunho político-crítico, visceral e hiper-realista, mesclado com certa verve que hoje definiria como existencialista, faziam confluir interesses que, nos anos subsequentes, me encaminhariam para a vida acadêmica, para a filosofia, as ciências sociais, a esquerda política... Com o decorrer dos anos, em diversas ocasiões, Belchior acabou se tornando, para mim, uma espécie de alter-ego. Quando morei no exterior, por exemplo. Ou agora, em salvador, sempre me pego cantarolando Apenas um rapaz latino-americano. Tanto que, na epígrafe de algumas redes sociais – o que me rendeu até homenagem de alunos no semestre passado  utilizo os versos iniciais do refrão daquela canção como síntese poética de minha biografia e um ponto de apoio para momentos difíceis.

Por isso, a perda de Belchior foi um choque. E, mais ainda, me pegou desprevenido, justamente por ocorrer em um momento em que precisávamos tanto de sua arte, em uma tarefa que, segundo consta, ele estava disposto a enfrentar. Foi-se o homem, fica a obra. E que obra! Infelizmente, porém, não vejo como homenagear nosso Dylan nordestino sem realçar a atualidade de uma de suas principais composições, Como nossos pais. A música que, quando descobri Belchior, fazia referência a um tempo que parecia, cada vez mais, um quadro desbotado na parede da memória nacional, hoje se revela de uma atualidade assustadora. Mas, como o novo sempre vem, que possamos em breve superar esse triste momento, e não precisemos viver como nossos pais...