Essa velha pergunta, já esmiuçada nos anos 60 por Bento Prado Júnior (ver referências abaixo), tem obviamente um quê de retórico. É claro que, no Brasil, como em qualquer outra parte, se faz filosofia – e, mais do que isso, uma filosofia rica e plural. Contudo, ela também tem um tom provocativo, que decorre de um certo desconforto meu, mas que, possivelmente, é compartilhado por outras pessoas que estão nesse meio: se é feita filosofia no Brasil, onde estariam os filósofos brasileiros?
Em primeiro lugar, é preciso demarcar que o que se entende, aqui, pelo adjetivo “brasileiro”, não diz respeito à ideia de se pensar uma “filosofia nacional”, expressão do espírito de um povo ou de uma nação (numa palavra, uma ideologia), ideia que Bento tão bem critica no texto supracitado – o que não impede, claro, certa confluência entre autores de um mesmo país, em relação ao estilo ou à escolha de determinados temas e problemas filosóficos em detrimento de outros (o que, segundo o trabalho de Luiz Alberto Cerqueira, também ocorreria no Brasil). Mas, dispondo a filosofia de uma tendência irresistível à universalidade (embora, naturalmente, a boa compreensão do pensamento de um autor passe também pela compreensão das condições particulares em que seu pensamento se desenvolveu), a ideia de uma espécie de programa filosófico nacional (advogada por alguns) torna-se altamente controvertida – e, nesse momento, dispensável. Sendo assim, “filósofo brasileiro”, aqui, tem apenas o seguinte sentido: há pensadores, em solo local, que contribuíram (ou contribuem) original e criativamente, não apenas para o estudo da história da filosofia (o que, por si só, já não é pouco), mas também para o desenvolvimento e florescimento de novas ideias, novas categorias ou conceitos, ou mesmo novas “escolas”, tal como ocorre frequentemente nos países que poderíamos chamar de “centrais”?
É curioso notar que essa pergunta não caberia a outras áreas do Saber. Ninguém se pergunta se há uma sociologia brasileira, uma economia etc. Talvez (e essa é só uma das perspectivas pelas quais poderíamos abordar semelhante questão) porque todo estudante de sociologia tenha, desde cedo, contato com o pensamento de Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Sérgio Buarque de Hollanda ou Fernando Henrique Cardoso. Ou porque todo futuro economista deva conhecer a obra de Celso Furtado ou de Caio Prado Junior. No entanto, por mais que incomode lembrar, o mesmo não se aplica à filosofia. Aqui, resta sempre a dúvida. Temos, de fato, filósofos autônomos no Brasil? Ou o que temos são “apenas” grandes historiadores e professores de filosofia?
Essas questões, não têm, absolutamente, caráter depreciativo. Parece-me muito claro que fazer a história da filosofia já é filosofar, e que não há filósofo que não seja ao mesmo tempo um historiador da filosofia. No entanto, creio, igualmente, que fazer apenas história da filosofia não esgota todas as possibilidades de desenvolvimento desse campo. No entanto, é flagrante o privilégio que quase sempre se conferiu ao trabalho erudito, em prejuízo do trabalho autônomo, no cenário filosófico brasileiro. E esse privilégio me incomoda profundamente. Por que exploramos apenas uma das facetas da práxis filosófica?
Não obstante o que disse acima, é curioso notar que, conquanto não tenham formado nenhuma “escola” ou “tradição” filosófica autônoma, há, sim, filósofos brasileiros. Acontece que, em geral, não os vemos. Por exemplo, poderia se indagar: qual estudante de filosofia, independente do juízo que possamos fazer acerca de suas obras, tem a oportunidade de conhecer, ao longo de sua formação, pensadores como Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto ou Farias Brito? Mesmo autores contemporâneos, como o já citado Bento Prado Júnior ou Marilena Chauí, dentre outros, que têm contribuições inéditas e importantes (ainda que não desenvolvidas de forma sistemática), são lidos pela academia muito mais pelos excelentes comentários e interpretações a textos clássicos (quando não são reconhecidos apenas pelos trabalhos de tradução), do que estudados, nas filigranas de seus pensamentos, com o intuito de se descobrir aí elementos que apontassem para os aspectos autônomos de sua própria reflexão filosófica – como se faz, por exemplo, quando se examina um texto de Descartes, Kant, ou Sartre. Qual a razão desse ofuscamento?
Bento Prado Júnior |
Marilena Chauí |
Para Cabrera, apesar de suas flagrantes diferenças, tratam-se, em ambos os casos, de conceber a práxis filosófica criadora dentro de um contexto sócio-cultural que permitiria seu desenvolvimento “como se a partir de condições sociais determinadas fosse surgir um autêntico filósofo”. Esquece-se, segundo o professor da UnB, “o motivo profundamente singular do ato de filosofar”, o “impulso singular de expor o mundo de uma maneira inevitavelmente pessoal, mas que, de um modo o outro, apela para o humano, para o que afeta a todos”. Assim, ambas as teses tornam-se insustentáveis. A primeira, pelo absurdo de acreditar que a função de um filósofo no Brasil (ou em qualquer outro país “periférico”) reduz-se a refletir sobre o pensamento fornecido pela “metrópole”. A segunda, tanto porque advoga uma espécie de determinismo inócuo, quanto porque entende não existirem “ainda” condições de um pensamento criador e original em terras brasilis – e que, se corroborada, acabaria postergando a possibilidade de uma produção filosófica independente, como no primeiro caso, para um futuro longínquo e indeterminado.
Ainda assim, como apontado anteriormente, há filósofos originais no Brasil. Então, porque não os identificamos, não os estudamos? A resposta de Cabrera para essa nossa cegueira é precisa: “O que não existe são os mecanismos, institucionais e valorativos, para poder visualizá-los”. Assim, prossegue: “A ‘não existência’ de filosofia no Brasil (e em muitos outros países) é um efeito produzido pela particular distribuição da informação hoje dominante no mundo, pela particular estrutura das instituições de ensino e de pesquisa, e por ideias unilaterais do que seja ter ou não valor como filosofia. Alterando estas condições, começaremos a ‘ver’ os nossos filósofos, ou seja, quando deixarmos de buscá-los nos lugares errados e com as imagens e expectativas erradas”. Nesse sentido, conclui o autor, “as condições institucionais [no Brasil], longe de favorecerem o surgimento de filósofos, na verdade podem estar afogando-os e eliminando-os antes mesmo deles nascerem”.
Em suma, as condições são claramente importantes, mas não determinam, como passe de mágica, o surgimento de indivíduos dispostos a exercer o pensamento crítico de maneira independente. Contudo, podem concorrer fortemente no sentido de impedir o seu florescimento. É, me parece, o que se passa hoje, no âmbito filosófico brasileiro. Primeiro, porque tendemos a não valorizar o pensamento que não se enquadre ao establishment. Em segundo lugar, porque não temos o hábito de dialogar filosoficamente com nossos pares. Ademais, no “trash império dos papers”, como definia Bento Prado, um paper no currículo (e o status que um currículo repleto de publicações, mesmo que protocolares, oferece) vale mais do que o risco de se propor uma ideia, uma categoria, um conceito original – e se dispor a debatê-los. E, verdade seja dita (e eu me incluo nela), os novos alunos de filosofia acabam, mais cedo ou mais tarde, sendo forçados (sob pena de não poderem continuar militando no meio da filosofia) a entrar de alguma forma nesse jogo – e são poucos os que conseguem sair dele e se manter. Contudo, parece-me contraditório com o próprio espírito da filosofia restringir a produção filosófica de valor ao que se faz em meia dúzia de nações "iluminadas", que deteriam o monopólio da criação filosófica, cabendo ao resto do mundo o papel de mero apêndice. Com efeito, não há porque não acreditar (e trabalhar para) que possam surgir trabalhos inovadores em países como o Brasil, igualmente capazes de criar, paulatinamente, uma tradição de pensamento filosófico autônomo. Mas, para isso, seria importante, dentre outras coisas, que, junto ao estudo dos clássicos, também abríssemos espaços, nos currículos de filosofia, para o exame da história e do pensamento de autores brasileiros (ainda que, como foi indicado, essa história e esse pensamento tenham se construído de forma pouco ou nada coesa, sem criar nenhum tipo de “unidade”, “tradição” ou “memória filosófica brasileira”, como se observa em países como França, Alemanha etc.).
Com efeito, acredito que a “descoberta” do que já se produziu por aqui, combinada à valorização de nossa produção intelectual e ao necessário estímulo à reflexão criadora e ao debate que faz girar a roda da filosofia, fomentaria a ousadia dos atuais e futuros estudantes, no sentido de agregar ao nosso imprescindível trabalho de historiadores da filosofia, o desafio (e os riscos que ele envolve) de também tentarmos pensar por conta própria – como muitos já fizeram e fazem (ou tentam), mas sem o reconhecimento ou o suporte devido. Assim, estaríamos certamente contribuindo para a progressiva constituição de uma verdadeira tradição de pensamento, não mais pautada exclusivamente pelas orientações trazidas do exterior, mas igualmente capaz de responder à altura os desafios com os quais o pensamento crítico se depara a cada período. E, afinal, quem ganharia com isso, seria a filosofia como um todo.
Referências bibliográficas:
CABRERA, Julio. O que significa dizer: "Não existem filósofos no Brasil"? Disponível em: http://vsites.unb.br/ih/fil/cabrera/portugues/fibra.htm
CERQUEIRA, Luiz Alberto. Filosofia brasileira: ontogênese da consciência de si. Petropolis: Vozes, 2002.
PRADO JR, Bento. “O problema da filosofia no Brasil”. In: Alguns ensaios – filosofia, literatura, psicanálise. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2000.