Sou da tese de que uma pessoa que
se agarra demasiadamente ao passado, é porque não está satisfeita com seu
presente ou, pior ainda, porque não vê boas expectativas com o futuro. De um
ponto de vista crítico, filosófico, quando a nostalgia toma conta, há de sempre
se perguntar se esse sentimento não tem como fermento oculto aquela desilusão
ou se, pelo contrário, se trata de um (necessário) refresco para o espírito em
nossa labuta diária.
Faço essa ressalva, porque a
nostalgia pode surgir em momentos específicos – o que me parece ser algo
completamente normal e mesmo saudável – e não ser um estado de espírito, sendo, assim, prejudicial. Eu, por exemplo, sou uma pessoa permeada, desde muito cedo, por
arroubos nostálgicos. E admito que tenho, por vezes, de me equilibrar entre ser
dominado por um mergulho afetivo que arrisca um desprendimento do presente – a
sensação de deslocamento, de ter nascido na época errada –, e aquela boa
nostalgia, que ajuda restaurar a mente e ajuda a iluminar a trajetória da
existência de cada um. Ainda no meu caso, a combinação
entre estrada, direção, música e a mente um pouco vazia, é catalisadora daquela
nostalgia latente. Foi num desses momentos, aliás, que a ideia desse arremedo
de crônica começou a surgir.
Em boa parte das vezes, meu sentimento
de nostalgia se volta para a tenra infância, o que significa, para alguém
nascido em 1985, o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990. Não por acaso,
portanto, aquela que, para muitos, é a “década perdida”, para mim assume um
colorido todo especial – e único. E é também um pouco sobre ela que desejo
falar.
Para os efeitos desse texto, me
permito violar o calendário, e considerar que a década de 1980 se estende,
aproximadamente, até o ano de 1992, 1993. Permito-me essa alteração, porque
entendo que é nesse momento que seus ecos econômicos, políticos, culturais,
estéticos etc. definitivamente se encerram, dando voz a um novo período que, de
algum modo, se estende até hoje.
Não pretendo aqui fazer um
balanço daquela década, mas, para não perder o veio filosófico, convém fazer
uma brevíssima contextualização, inclusive para compreender a contradição entre
aquilo que, em termos emprestados de Hegel, pode-se chamar de “espírito
objetivo” de uma época e o “espírito subjetivo”, isto é, a vivência individual daquele
momento (que, imagino, se assemelhará a de muitos leitores desse texto que
viveram aquele período).
Do ponto de vista mundial, os
anos de 1980 são considerados a “década perdida”, sobretudo por conta dos
reveses econômicos globais. Mais importante, no entanto, é o fato de que, nesse
decênio, uma nova visão de mundo começa a se consolidar, estabelecendo-se em
definitivo a partir de 1992, 1993, como disse anteriormente, o que coincide com
o fim da Guerra Fria, isto é, com o colapso da União Soviética e o triunfo
definitivo do capitalismo, do liberalismo e do american way of life. Na economia, essa nova visão recebe o nome de
“neoliberalismo”. Em termos culturais, fala-se de “pós-modernismo”. Na política,
prefere-se “nova ordem” ou “globalização”. Não importa propriamente a
denominação, já que se trata de facetas de um mesmo processo, de determinação
de uma nova forma de enxergar o mundo, uma nova racionalidade, que acompanha o rearranjo fo capitalismo global. Nela, se
privilegia, como nunca antes, o individualismo, a aparência, o prazer instantâneo
etc., em detrimento do coletivo, da permanência, da duração. A superficialidade
de grande parte da arte nesse período, por exemplo, é uma ilustração dessa
mudança (basta ver as músicas mais executadas, ou os filmes mais assistidos, e
comparar, por exemplo, com os anos 1970).
Não que tudo o que ocorreu
naquela década se explique por esses fatores. Isso seria cair na perigosa
armadilha do determinismo que, querendo explicar tudo a partir de um único
fator, acaba não explicando nada. Mas, em linhas gerais, as observações acima
ajudam a delimitar minimamente o cenário.
Cena do filme Curtindo a vida adoidado |
No entanto, para quem, de algum
modo, viveu aquele período, recebeu suas influências e carrega, ainda que
inconscientemente, suas marcas, as coisas são ainda mais complexas, pois
atravessadas por sentimentos e lembranças. Não é preciso apelar à psicanálise
para saber o quanto as experiências da primeira infância são decisivas para os
rumos que nossa vida tomará. Basta um autoexame sincero para constatá-lo.
Por exemplo: a aludida
“superficialidade” da arte – pelo menos, da indústria cultural. Curtindo a vida adoidado, De volta para o futuro ou Clube dos cinco, são filmes
paradigmáticos do espírito dos anos 1980. Por trás do entretenimento, acredito
que o sucesso dessas películas é inseparável da percepção de uma juventude em
conflito, num momento de transição de valores, cada vez mais ensimesmada em sua
vida particular, instigada a fugir da realidade, posto que o presente apontava
para um futuro repleto de incertezas (diferente do que ocorrera com a geração
anterior). De algum modo, portanto, esses filmes são (também) ilustrações,
provavelmente sem o desejarem, de uma ideologia em gestação. Mas, experimente
dizer isso para quem assistia esses filmes nas Sessões da tarde ou nos Cinema em casa da vida...
Aliás, ainda nesse âmbito
artístico, citei mais acima a música como uma via de entrada para nostalgia,
porque é especialmente através dela que eu me volto para aquele período. Claro
que programas de TV, personagens, ou brinquedos e objetos em geral, têm esse
poder de remissão. Muitas das coisas do vídeo abaixo me conduzem diretamente a
1989, 1990... Mas, o caso da música é diferente.
O grupo A-ha, no clipe de "You are the one" |
Desde quando comecei a definir
meu gosto musical (já na segunda metade dos 90), sempre tive a impressão de que
certas canções ou artistas me transportavam para meus primeiros anos de vida,
como na experiência da madeleine do
personagem principal do romance de Marcel Proust, No caminho de Swann. Claro que isso se dava porque muitas delas
eram realmente daquela época – o rock nacional, depois o hard rock/glam metal e
o pop –, e exprimiam, a seu modo, o “espírito” dos 80. Mas não era – e não é –
só isso. Na verdade, sinto como se as tivesse ouvido em algum momento – no
rádio, na TV – e as registrado vagamente em minha memória. Assim, cada nova
audição parece como uma tentativa de recuperar a experiência original. Primeira
vez que, em alguns casos, houve mesmo, sobretudo ligadas a artistas voltados
para o público infantil (Xuxa, Mara Maravilha, Balão Mágico etc.), mas que, em
outros, já não é tão certo, pois meus pais não eram fãs de música
internacional, embora tivéssemos alguns LPs e K7s em casa.
Um exemplo que me vem de pronto à
mente: “You are the one”, do A-Ha. A primeira vez que ouvi essa música, digamos,
conscientemente, me senti lidando com uma velha conhecida. Provavelmente já era
mesmo, posto que ela fez bastante sucesso, e a banda tocava muito por aqui.
Mas, até hoje, tenho a sensação de que a escutei inicialmente em um bom momento
da infância – talvez brincando, ou no colo da minha mãe. Outras tantas músicas, principalmente de hard rock, têm o
mesmo efeito, ainda que, possivelmente, não as tenha escutado quando criança.
Vai entender...
Silvio Santos e os jurados do "Show de calouros" |
Outro caso curioso ocorreu há
alguns anos, quando estava morando em Paris. Logo nos primeiros dias, no metrô,
alguém entrou no vagão para tocar violino em troca de alguns trocados. Logo nos
primeiros acordes, comecei a cantarolar junto, bem baixinho o que ouvia.
Tratava-se de uma canção folclórica russa (dado que descobri depois), que ainda
ouviria outras tantas vezes, sempre na mesma situação. Para mim, porém, ela
representava outra coisa: era a música de abertura do Show de calouros, famoso programa comandado por Silvio Santos e
que, claro, assistia quando criança. Durante a execução, viajei para minha
antiga casa, sem sair do lugar. Desnecessário dizer que, naquele dia, fui ao
Youtube (um privilégio de nossa época!) para rever aquela abertura...
Exemplos assim poderiam ser
multiplicados. Mas, mas como a lida cotidiana não perdoa, e esse texto já ficou
maior do que eu imaginava, é hora de voltar a 2016. Em outro momento, quem
sabe, uma nova divagação desse tipo possa surgir. Afinal, desde que não sejamos
tomados por ela, um pouco de nostalgia pode ser um verdadeiro elixir para a
alma!