Motivado por uma atividade na
UFBA, resolvi escrever este post esboçando uma interpretação do filme O sétimo selo, do diretor sueco Ingmar
Bergman, à luz da filosofia de Sartre. Mais particularmente, de um eixo
temático comum a ambos: a ligação entre a existência de Deus e a morte.
O enredo do filme – cujo título
remete a uma passagem do Apocalipse, na Bíblia – é relativamente simples: no
final da Idade Média, um cavaleiro e seu ajudante retornam das Cruzadas e se
deparam com uma população avassalada pela Peste. O cavaleiro, Antonius Block
recebe a visita da Morte e, a fim de estender sua vida, convida-a para um jogo
de xadrez. Se perdesse, partiria com ela. Enquanto o jogo não terminasse,
permaneceria vivo, em busca de um sinal da existência de Deus e de que sua vida
não teria sido em vão. A Morte, que nunca fora derrotada, aceita o desafio.
A partir daí, o filme retrata a
jornada de Block em busca das respostas à suas aflições existenciais em um
mundo fortemente marcado pela religiosidade e pelo medo. Neste contexto, dois
temas tipicamente afeitos ao pensamento de Sartre brotam ao longo da película.
O primeiro é precisamente a busca por um sentido transcendente, uma
justificativa para a vida, que atravessaria o próprio ser do homem, mas cuja
resposta seria impossível, dada a ausência de Deus. Por exemplo: em dado
momento, Block se desespera porque quer abandonar tudo, se entregar ao seu
inevitável destino, mas, ao mesmo tempo, sente-se incapaz dessa resignação,
porque não consegue se desvencilhar da dúvida, da inquietação por saber se sua
vida, integralmente dedicada a Deus, teria tido algum sentido.
Com efeito, Bergman elabora uma a
permanente tensão que perpassa toda a jornada de Block: a tensão entre sua
crença, isto é, o desejo de que Deus forneça algum sinal de que a vida – a sua
em particular, mas também a de todos acometidos pela tragédia, que não
abandonam a fé – e a ausência de qualquer resposta concreta. O fracasso, a paixão inútil do ser humano, diria Sartre.

Nesse sentido, quase como um
Sancho Pança do célebre romance de Cervantes, o ajudante de Block, Jöns, funciona
no filme como uma espécie de “voz da razão”. Cético, em toda oportunidade
aponta para a gratuidade do existir – a contingência
do ser, para usar outro conceito de Sartre. Isso fica claro, por exemplo, no
momento em que uma mulher acusada de “bruxaria” – por conseguinte, culpada pela
disseminação do castigo da Peste – será crucificada e queimada. Observando seu
olhar aterrorizado e sem direção nos instantes que precedem a sua terrível
execução, Block se pergunta o que ela estaria vendo. Jöns, sem rodeios,
simplesmente responde: “O vazio”. Em outros termos, ela estaria percebendo, à
beira da morte, que não há nada: nem além, nem salvação...
Mas, a cena mais emblemática do
filme talvez seja aquela em que Block vai a um confessionário e ali expõe sua
angústia. O diálogo denso, típico da obra de Bergman, sintetiza as questões
filosóficas de O sétimo selo. E
igualmente ilustra a inevitabilidade do fim. Isso porque Block pensa estar
conversando com um padre, quando, na verdade, é a própria Morte quem está no
confessionário. Enganado, acaba entregando uma jogada que faria na partida de
xadrez e que, a seu ver, resultaria em vitória. A Morte está sempre um passo a
frente. Seu triunfo ante a vida é inexorável.
Aqui, no entanto, convém fazer
uma ressalva no que diz respeito à aproximação de O sétimo selo com Sartre. É que, ao contrário do que pode parecer à
primeira vista, o pensamento sartriano em nenhum momento abraça o niilismo –
como o longa pode eventualmente respaldar. Não haver sentido a priori para a existência humana, não
haver justificativa para estarmos aqui, não haver Deus, enfim, não representa,
para o filósofo, a simples celebração da gratuidade. Pelo contrário, Sartre
entende que todos esses elementos convergem para a afirmação da absoluta
liberdade (e, consequentemente, responsabilidade) do ser humano diante de si,
de outrem, do mundo. Têm, portanto, um caráter antes positivo do que negativo.
Não se trata de ceder ao desespero diante do desamparo da solidão existencial,
mas de tomar a contingência como ponto de partida para a criação de sentido.

Finalmente, nessa linha, a última
tomada do filme permite reaproximar Bergman e Sartre – ao menos, o Sartre dos
anos 1930, 1940, francamente empenhado em uma literatura engajada, e uma interpretação não niilista do filme. A ciranda da
Morte leva todos os personagens do filme, exceto um casal de artistas com seu
bebê. De certo modo, pode-se afirmar que a arte aparece, para o diretor sueco,
como fonte de salvação: provisória, pode-se replicar. Ainda assim, no entanto, como
salvação. Com Sartre, se poderia complementar: não como salvação para o além,
mas como meio de conferir algum sentido no aqui e agora da vida diante da
absoluta gratuidade do real – o que também, de certo modo, é um “salvar-se”. Aliás,
é essa conclusão a que chega Antoine Roquentin, protagonista do romance
sartriano
A náusea. Ou, para usar uma
feliz definição do recém-falecido Ferreira Gullar: “a arte existe porque a vida
não basta”. Bergman e Sartre certamente ratificariam as palavras do poeta
brasileiro.