Em seus escritos de juventude, Marx definia a religião como “sumário das lutas teóricas da humanidade”, uma “enciclopédia popular” que forneceria um conjunto de respostas prontas e acessíveis sobre a realidade. Dito de outro modo, a religião, de modo dogmático e sem avançar nos meandros do real, serviria de justificativa e consolo diante da miséria do mundo. Contudo, Marx entendia que a crítica da religião seria estéril se limitada à denúncia do que ele entendia ser aquela mistificação. Antes, era preciso dirigir a crítica filosófica à conjuntura na qual a religião podia desempenhar aquele papel “enciclopédico”.
Fiz esse preâmbulo porque, em certo sentido, a direita brasileira logrou êxito, nos últimos anos, em disseminar uma espécie de “saber” que em muito remete ao entendimento marxiano da religião, se desprovido do lado sacro desta última. Trata-se de uma espécie de cartilha francamente contrária a quaisquer valores de esquerda, que fornece um anti-marxismo e um anti-socialismo tosco, a ponto de identificar, sem cerimônia, o PT (e demais partidos de esquerda, supostamente “braços” do primeiro), os governos Lula e Dilma e comunismo em uma única equação, uma espécie de síntese do mal.
Desnecessário ser de esquerda para saber que essa associação é, sob qualquer ponto de vista, insustentável. Entretanto, justamente por se tratar de um dogmatismo, sua fraqueza termina por ser sua força. Porque não penetra na realidade, mas se limita a uma aparência obscura, termina por justificar, por meio de associações arbitrárias, mas facilmente assimiláveis – ou seja, absorvidas sem exigência de reflexão. Assim, a cartilha da direita pode trabalhar com certo imaginário, historicamente sedimentado – aquele que associa comunismo, ditadura e pobreza generalizada – e transpô-lo para a realidade brasileira, na qual seu veículo de concretização seria o PT e seus líderes, sem necessidade de justificar as conexões que promove.
Esse tipo de procedimento não é exatamente uma novidade. O que é novo é que esse “manual anti-esquerda” foi incorporado – na melhor das hipóteses, ressoou com força – pela mídia corporativa do país, como parte de um projeto de auto-conservação (financeira e política). Mais ainda, essa mídia foi essencial em sua disseminação, construindo, desse modo, uma espécie de
hegemonia às avessas: a locução adverbial aqui serve para indicar que, se o conceito de hegemonia consagrado pela tradição marxista pelas mãos de Gramsci (a ideia de uma reforma intelectual e moral capaz de consolidar uma visão de mundo alternativa) visava a transformação social, essa hegemonia se dá em sentido oposto. Bem entendido, não se trata apenas de conservar o
status quo, isto é, reagir a novas mudanças, mas retroceder em direção a um passado no qual “o fantasma do comunismo” não existiria, ou, caso ameaçasse aparecer, era imediatamente sufocado em seu nascedouro (como na ditadura militar).
Agora, se poderia questionar como foi possível, ainda durante os governos petistas, que essa disseminação lograsse êxito. Para além de erros dos próprios governos e do PT, estabeleceu-se uma fratura, agora talvez mais evidente, entre o que se poderia chamar de parcela organizada da esquerda (aí inclusa sua intelectualidade) e uma massa difusa (serial, diria Sartre) que, ao mesmo tempo em que conheceu ganhos materiais no início de século, não avançou correspondentemente no âmbito da organização política e de valores coletivistas. Assim, tornou-se presa fácil daquele discurso precário, capilarizado pela grande mídia (e também, o que seria objeto para outra reflexão, das novas igrejas pentecostais). O recente estudo da Fundação Perseu Abramo sobre os valores da periferia de SP é claro a esse respeito (leia
aqui).
Diante desse impasse, seria preciso refazer essa mediação. O PT, que nasceu com esse propósito, não parece ter forças, em curto prazo, a retomar este posto. Outros partidos de esquerda jamais conseguiram se posicionar nesse papel mediador, quase sempre fechando-se sobre si mesmos. Talvez, a única figura capaz de reconectar esses extremos, ou fazê-los dialogar minimamente, seja o ex-presidente Lula. Se essa percepção é válida, ela concentra uma parte do dilema da esquerda: não ter alternativa, se não recorrer a uma velha figura para poder se reerguer, figura essa que, como não bastasse seu desgaste natural, há tempos tem sido alvo contumaz de desconstrução por aquela mídia corporativa disseminadora do anti-esquerdismo. Ou seja...
Aliás, diante dessa reflexão, me lembro de uma frase certa vez proferida, vejam só, por FHC: “se Lênin fosse vivo hoje, ao invés de um partido, teria uma emissora de TV”. Uma vez na vida, concordo com o ex-presidente tucano. E acrescento: talvez o maior erro dos governos petistas tenha sido justamente não enfrentar de fato a oligopólio midiático brasileiro. O resultado está aí. Mas, sem maiores lamúrias, é preciso enfrentá-lo. Um caminho é tomar a sério o ensinamento de Marx e, antes de limitar a crítica apenas à indigência daquele risível discurso, é compreender as condições que o permitem prosperar e atacá-las. Para tanto, restabelecer aquela mediação entre o conjunto da esquerda (para além das divergências) e a massa que hoje serve de apoio ao “anti-comunismo”, é o passo primordial nesse momento.