Por força da minha pesquisa de doutorado, precisei reler Marx mais atentamente no último período, fato que se repetirá, provavelmente, ao longo dos próximos anos. Talvez empolgado com o que li (na verdade, com o que reli), decidi escrever um pouco a respeito de um dos pontos mais brilhantes da análise de Marx sobre o capitalismo (ou, para ser mais exato, do “modo de produção capitalista”): o exame do que o filósofo chama de caráter fetichista da mercadoria. Não é só brilhante porque desvenda um dos “segredos” do nosso sistema sócio-econômico, mas por conta de sua impressionante atualidade, da forma como nos ajuda a compreender alguns aspectos de nossa vida. Vou tentar, de maneira resumida, expor essa parte da teoria marxista.
Para Marx, a riqueza das sociedades capitalistas aparece como “uma imensa coleção de mercadorias”. Por isso, sua analise se inicia com elas. Mercadoria, para Marx, é toda coisa externa que, por suas propriedades, é capaz de satisfazer as necessidades humanas. Além disso, a mercadoria encerra outra dimensão fundamental: ela é produto de trabalho humano. Toda mercadoria apresenta um valor de uso, isto é, aquilo para o qual está destinada, e um valor de troca, ou simplesmente valor. A diferença entre uma roupa costurada por uma mãe para seu filho, e uma que compramos na loja não está em seu valor de uso, mas no seu valor de troca. A primeira não é uma mercadoria; a segunda é. É que, ao entrar na esfera da circulação e da troca, a mercadoria perde suas características essenciais (que determinam seu valor de uso) e transformam-se em equivalentes objetivos de outras mercadorias. Ela passa a ter um valor de troca. Esse valor é, no fundo, a medida objetiva da quantidade de trabalho utilizada na produção da mercadoria. É através dela que se pode trocar mercadorias distintas ou, mais precisamente, quantidades de trabalhos sociais distintos. O que dá valor a uma mercadoria é, portanto, o trabalho vivo empregado em sua fabricação.

O caráter social dos diversos trabalhos particulares só se manifesta pela troca: cada produtor (o capitalista) produz para o mercado, em busca de algo com o qual possa trocar seu produto. Ou seja, quando produz mercadorias para satisfazer as necessidades dos outros, ele visa satisfazer, antes de tudo, as suas próprias necessidades. É o entrelaçamento de todos os produtores que configura o caráter social da produção. No mercado é organizada e articulada a divisão do trabalho, e o conjunto dos produtores (no qual cada um busca trocar seu produto por outro) realiza uma cooperação espontânea. Vou tentar dar um exemplo bastante simplificado. Imaginem um produtor de ferro. Suponhamos que ele precise, digamos, de 10 novas peças de roupas e 02 novos pares de sapato para uso pessoal. Para consegui-los, ele vende seu produto no mercado e, em troca, adquire aqueles que desejava. Até aqui, nada de novo; este é o fundamento de toda troca. Mas, vale destacar, ao mesmo tempo em que produz o ferro para poder adquirir outras mercadorias para si mesmo, ele produziu o ferro que entrará na fabricação das máquinas de outros produtores, responsáveis pela fabricação das roupas e dos calçados que ele irá comprar. E estes outros produtores, ao venderem seus produtos para o primeiro produtor, procurarão o produto de outros produtores e assim por diante. As necessidades particulares são satisfeitas por essa larga cooperação.

Como se pode supor, no capitalismo, a divisão do trabalho e da produção, mencionada acima, é levada ao seu grau máximo de socialização. A divisão é, mais do que nunca, operada em níveis globais. Essa divisão mundial do trabalho torna-se, com efeito, a principal força produtiva (na medida em que potencializa o trabalho vivo dos homens, a força produtiva original) e ganha a forma da concorrência, isto é, de “guerra de todos contra todos”, como diz Denis Collin, retomando a antiga fórmula do filósofo Thomas Hobbes. No fundo, é o capital que entra em conflito consigo mesmo. Mas, no que mais interessa ao nosso ponto, é fácil deduzir que, quanto maior a extensão da divisão internacional do trabalho, mais oculto o caráter das relações sociais por detrás das mercadorias, e, consequentemente, maior seu caráter fetichista. De fato, desde um pacote de arroz no supermercado, uma roupa, um brinquedo, até um carro, ou uma casa: tudo que é vendido no mercado, sob forma de mercadoria, encerra relações sociais, é fruto de trabalho humano. Mas, cada vez mais, as mercadorias parecem ter “vida própria”, dotadas de poderes fantásticos que, quando adquiridas, passariam para as mãos daqueles que as compram. A lógica aqui, para Marx, é a mesma da religião, na qual os deuses, criados pelos homens, com propriedades, características e sentimentos humanos, passam a dominá-los, como se tivessem uma existência autônoma. Um dos efeitos do caráter fetichista da mercadoria – e que sustenta a atualidade da análise marxiana – é explorado pela publicidade e pela propaganda, que investem pesado no aspecto sobrenatural da mercadoria. Grande parte da lógica de estimular o consumo é, exatamente, persuadir o consumidor de que, ao adquirir determinada mercadoria, ele será “especial”, “mais feliz”, “conquistará mais pessoas”, etc. Como se, por um feitiço, ele fosse capaz de incorporar as “propriedades mágicas” do que está comprando. E como se essas propriedades decorressem da própria natureza da mercadoria. O que fica camuflado, é que as mercadorias que compramos não estão desvinculadas de relações sociais. Quer dizer, elas são relações sociais cristalizadas. É o mesmo trabalho humano que as produz. É ele (e não alguma propriedade fantástica, sobre-humana) que faz a mercadoria ter propriamente um valor, porque o trabalho modifica a natureza, criando algo capaz de satisfazer nossas necessidades.
Porém, fica para uma outra oportunidade analisar mais detidamente o caráter desse trabalho. Sabemos, por exemplo, que o dono de uma indústria não produz diretamente (ou individualmente). Ele tem sob sua tutela uma série de pessoas contratadas para realizarem o produto final de sua empresa e, por conseguinte, dar a ele o que Marx chama de mais-valia (grosso modo, aquilo que proporcionará a ele o lucro). E isso nos coloca uma infinidade de questões. Por exemplo, e no que é um dos traços marcantes do capitalismo, o próprio trabalho humano (convertido em trabalho assalariado), aquele que produz as mercadorias, será transformado, também ele, em uma mercadoria – logo, capaz de ser mensurada objetivamente por seu valor de troca. A conclusão a que se chega daí é muito simples, embora profunda: no modo de produção capitalista, o trabalhador perde seu estatuto de humanidade, tornando-se “coisa”, um produto comprado e vendido no mercado. E “a vida mesma”, diz Marx, resumida à mera luta pela sobrevivência, perde toda sua dignidade, e “aparece só como meio de vida”.
Para quem se interessar pelo tema:
MARX, Karl. O capital. Vol. I, Cap. I (há várias edições em português).
Uma boa introdução ao pensamento de Marx é:
COLLIN, Denis. Compreender Marx (Ed. Vozes).
Ótimo texto.
ResponderExcluirSinceros parabéns!
Abraços e tudo de bom,
http://antoniozai.wordpress.com
Caro Antônio, muito obrigado!
ResponderExcluirEsse brilhante texto me ajudou muito. Obrigada ;D
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirMuito bom o texto, me ajudou a compreender melhor a questão da mercadoria misteriosa. Obrigada!
ResponderExcluirAgradeço!
ExcluirObrigado pela análise, gostei bastante do texto.
ResponderExcluir:^)
Grato!
Excluirpodemo ler sua tese de doutorado? rsrsrs. muito bom, parabéns
ResponderExcluirMuito obrigado! Não sei se ela está disponível no site da UFSCar, onde defendi, mas espero conseguir publicá-la em breve.
ExcluirAmanhã (09/11/19) apresento um trabalho com esse tema, seu texto foi muito esclarecedor para mim. obrigada pela escrita fácil.
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