Uma das maiores novidades
filosóficas deste início de século XXI – independente do juízo crítico que se
possa fazer a seu respeito, o que não é nossa intenção aqui – foi o surgimento
da assim chamada Fenomenologia da Vida,
esboçada pelo filósofo francês Renaud Barbaras. Tomando como ponto de partida o
a priori universal da correlação do
ente transcendente e a diversidade de suas aparições subjetivas, isto é,
basicamente, a relação intrínseca da consciência com o mundo (que aparece a ela
enquanto fenômeno), Barbaras elabora uma exaustiva crítica à tradição
filosófica, notadamente aquela de viés fenomenológico que, segundo o filósofo,
teriam falhado na apreensão exata dessa correlação. Mais precisamente, não
teriam dado conta do sentido de ser do
sujeito dessa relação. Mesmo filósofos como Merleau-Ponty e Patočka (que, para
Barbaras, mais teriam se aproximado de tal compreensão), não teriam sido
capazes de, ao fim e ao cabo, se verem livres de algum traço de
substancialização (ao modo herdado da tradição cartesiana) ou reificação desse
sujeito. Segundo o filósofo, a única maneira de evitar tais aporias é partir da
própria correlação, para só então poder definir seus termos.
Ora, é precisamente o sentido
deste viver que seria, então, a tarefa própria da investigação fenomenológica. A
pergunta que se coloca, destarte, é a seguinte: como podem a vida transitiva da
consciência (sempre relacionada a algo, intencionalidade) e a vida dos demais
seres vivos proceder igualmente deste viver originário? De acordo com Barbaras,
a única maneira de equacionar tal questão é pensar o viver como algo que vai
além dos seres, inclusive da própria consciência. Por isso, dirá o filósofo, só
poderia haver antropologia privativa.
Diferentemente da perspectiva hegemonicamente adotada, a consciência não seria
a vida (animal) mais alguma coisa,
mas seria, ela mesma, uma involução,
uma limitação inerente à própria vida que a transcende. Há, portanto, uma
identidade fundamental da vida e da consciência. Por isso, para que algo como
uma consciência possa emergir do seio da vida, é preciso que esta possibilidade
esteja contida na própria essência da vida. Para o filósofo, é porque a vida é Desejo (em sentido ontológico ou
transcendental), portanto, transitiva, intencional desde si mesma, que algo
como a consciência (ou a intencionalidade) pode surgir. Assim, não seria a
consciência que estaria na origem da intencionalidade, mas, ao contrário, a
intencionalidade (do viver em sua unidade originária, isto é, como Desejo), que
estaria na base do surgimento da consciência.
Finalmente, ainda duas
considerações: em primeiro lugar, que há em Barbaras muito mais uma cosmologia e do que uma ontologia (no sentido de Heidegger, por
exemplo): pois, o que neste pertencia do domínio “existencial”, torna-se, nas
mãos do filósofo francês, essencialmente “vital”. Falta, porém, responder: de
onde ou como surge a Vida? Em segundo lugar, vale refletir – o que não será
possível fazer aqui – a propósito das perspectivas éticas que, a nosso ver, se
abrem com a fenomenologia de Barbaras. Isto é, pensar em que sentido a
“antropologia privativa” barbarasiana, sua compreensão do estatuto de
correlação do homem com o mundo que, sem perder de vista aquilo que nos difere
de outros seres, garante nosso parentesco intramundano no seio do Viver
originário, pode responder a questionamentos éticos postos em nossa época. Dito
de outro modo: a ênfase na vida contra a hegemonia filosófico-cultural do que Barbaras denomina “ontologia da morte” (isto é, a
maioria das tentativas filosóficas precedentes de se pensar a vida, que a
veriam sempre pela perspectiva de seu aniquilamento, como simples
sobrevivência, ou seja, como “exceção” advinda ao mundo físico-químico da
matéria, e cujo sentido de ser seria tão somente o de retornar este) poderia
auxiliar na reflexão de um problema tão urgente quanto o de reverter nossa
relação destrutiva com a própria vida em nosso planeta?
Pensar a correlação em si mesma é
colocar em questão a própria possibilidade de aparição de um transcendente para
alguém. É, por conseguinte, indagar o próprio ser do sujeito que sustenta o
fenômeno. Como bem nota Barbaras, trata-se de apreender a univocidade e a
equivocidade deste sujeito, ou seja, dar conta de um ser que é parte do mundo
e, ao mesmo tempo, condição de aparição deste mesmo mundo. Dito de outro modo,
elucidar a diferença antropológica – o fato de o homem ter consciência, ser
fenomenalizante – sem cair no idealismo transcendental de Husserl, que
expulsava a consciência do mundo, eliminando a comunidade ontológica entre
ambos. De acordo com Barbaras, para se respeitar o estatuto da correlação, o
sentido de ser do sujeito só pode ser definido como viver (vivre), na medida
em que se toma este termo na unidade originária de sua dupla significação:
viver como “estar vivo” (être-en-vie),
leben, e como “fazer experiência”,
“experimentar algo”, erleben. O
próprio do sujeito é que ele vive –
em ambos os sentidos do termo.

È preciso, porém, tomar o cuidado
de não confundir desejo e falta: o que falta ao homem, assevera Barbaras, é a
si mesmo enquanto sujeito; o desejo é desejo de nada, pois nada pode lhe
satisfazer. Desejo é frustração. A consciência nasce dessa frustração. O Desejo
é o fundo da consciência, o que lhe permite ser intencional, relacionar-se com
o mundo, perceber o mundo. Assim, toda correlação entre consciência e mundo
decorre de uma relação mais originária de Desejo e aquilo que Barbaras denomina
de Aberto (Ouvert), quer dizer, a totalidade intotalizável do mundo. O que caracteriza
o homem como ser fenomenalizante pertencente ao mundo é o movimento (manifestação própria do Desejo), na medida em que este
conjuga a intramundaneidade do homem e a característica própria de sua
existência. Nesse sentido, o Desejo é o sentido de ser e condição da própria
correlação fenomenológica.

Bibliografia:
BARBARAS, Renaud. Introduction
à une phénoménologie de la vie. Paris : Librairie Philosophique J. Vrin, 2008.
Ver também:
BARBARAS, Renaud. Vie et intentionnalité – recherches phénoménologiques. Paris : Librairie Philosophique J. Vrin, 2003.
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