Na abertura da Dialética
do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer questionam: “por que a humanidade, em vez de entrar
em um estado verdadeiramente humano, está em uma nova espécie de barbárie?”. De
fato, esperava-se que, com a civilização científica e com o triunfo do
pensamento esclarecido (Iluminismo), isto é, o pensamento livre dos mitos e
superstições, a humanidade entraria em uma idade de ouro, livrando-se da barbárie
própria de nossa vida natural. No entanto, nossa situação mostra que os
sonhos do iluminismo eram apenas ilusões: atualmente, o pensamento crítico e
emancipado encontra-se em regressão, convertido em pensamento único. Este fracasso
pode ser lido como o fracasso do projeto moderno de articular a autonomia da
razão e a conquista da felicidade, cujo ideal está na base da noção de ciência
que emerge após a Renascença. Quais as suas razões?
Segundo os autores, a causa elementar é a
ausência da capacidade de julgar e discutir nos cidadãos que vivem na sociedade
tecnológica e bem “administrada”. A busca de conhecimento crítico é abandonada
e usa-se a razão exclusivamente para criar instrumentos e meios que garantam a
conservação da vida. Com efeito, o ideal de felicidade, inscrito nos primeiros
sistemas filosófico-científicos da modernidade (Bacon, Descartes), foi
transmutado em uma tentativa desesperada de auto-conservação. A modernidade
iluminista criou a sociedade de massa e o pensamento massificado ou o
pensamento único, “unidimensional”, como diria Hebert Marcuse. Ou seja, fez
surgir uma sociedade na qual todos, para garantirem sua conservação, devem
pensar de modo normatizado, de acordo com padrões de uma inteligência tecnológica,
econômica e pragmática.
Essa
uniformização do pensamento – na verdade, sua submissão aos ditames de uma
lógica heterônoma, no limite, a reprodução do capital – encontra suas bases
teóricas já naqueles primeiros filósofos modernos. Por exemplo, a unidade da
razão em Descartes, que exportava o método da evidência matemática para todos
os demais campos do saber, como a moral. Único método, único objeto. Essa
unidade, porém – a história assim o demonstrou – prejudicaria a articulação
necessária entre teoria e prática, entre ciência e a emancipação humana
prometida, ao mesmo tempo em que seria a chave do progresso, ideal tão característico do período.
O progresso da razão esclarecida, de fato, criou dialeticamente sua
própria antítese: a realização da autonomia da razão
resultou no estabelecimento de um modelo único de racionalidade ao qual se
subordina todo o conhecimento, e que se põe como requisito do próprio exercício
da razão. O resultado é paradoxal: como explicado no ensaio O conceito do Iluminismo, que abre a Dialética do esclarecimento, a razão iluminista, que surge na
modernidade com o intuito de emancipar o ser humano dos constrangimentos
naturais, das superstições e dos mitos, recaiu em uma nova forma de mitologia.
O núcleo dessa
nova mitologia se expressa na confusão entre racionalidade e dominação, típica
da prática científica moderna. O indivíduo dominado pelo pensamento mítico, não
esclarecido, deparava-se com impedimentos para celebrar o casamento entre
entendimento e verdade. Bacon, na aurora de nossa época, havia nomeado estes
empecilhos: credulidade, aversão à dúvida, temeridade no responder,
vangloriar-se com o saber e ter conhecimentos parciais. A vitória sobre estes
impedimentos residiria no saber, isto é, na capacidade racional humana. Ao
utilizá-la, o ser humano vence a superstição, desencanta a natureza e a si
mesmo, e transforma seu conhecimento em técnica. “Saber é poder”, dizia Bacon.
Nesse sentido, o
esclarecimento é justamente o movimento da razão que pretende
racionalizar o mundo, tornando-o manipulável pelo ser humano. No mundo
mitológico, quando o sacerdote invocava as forças da natureza em benefício do ser
humano, por exemplo, ele nada mais pretendia do que reverter o poder dominante
destas forças, para que elas não concorressem na destruição do universo humano. Já no caso da técnica, a supremacia, o poder e
a possibilidade de domínio situam-se do lado do homem. “O esclarecimento
comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este os
conhece na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as
coisas na medida em que pode fazê-las”.
Portanto, na época
moderna, o progresso do
conhecimento é o progresso do domínio – da natureza e dos próprios homens. O Iluminismo, numa palavra, nada mais é do
que a passagem do mito à razão esclarecida, à “maioridade”, como diria Kant. Não
se trata, porém, de um movimento que não cobra uma pesada contrapartida: “o
preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre
o que exercem o poder”. Nesse sentido, posta a identificação entre conhecimento
e dominação, a instrumentação para o domínio recobriu a totalidade do que se
entende como o próprio exercício da racionalidade. Uma das principais
consequências é que, na sociedade esclarecida, o pensar se
transforma em instrumento das
ciências positivas. Tudo – inclusive o ser humano – se reduz a uma coisa, manipulável externamente. Com isso, porém, aquilo que era dinâmico
e criativo perde sua autonomia e autoconsciência. O pensamento é reificado, transformado
em coisa, em algo fixo, passivo e automático.
Por isso, Adorno
e Horkheimer dizem que o pensamento esclarecido é um pensamento que não se
pensa. É o indivíduo e a ciência que não refletem sobre os fins e as consequências
de suas ações: “o esclarecimento pôs de lado a exigência clássica de pensar o
pensamento porque ela desviaria do imperativo de comandar a práxis”. Mas, o que
seria “pensar o pensamento”? Refletir criticamente sobre as condições do pensar
em geral e sobre o conteúdo do que se pensa. A sociedade massificada recusa
esta exigência e a classifica como delírio. Por exemplo, os produtos culturais
da indústria da comunicação de massa não favorecem a reflexão, mas reproduzem o
que é necessário à conservação do status
quo. Também, o conhecimento científico não pensa as condições socio-históricas
e lógicas de sua produção, bem como seus valores e usos. A meta da ciência
praticamente se reduz a criar algo “útil”, economicamente viável.
Tampouco o trabalhador assalariado pensa nas reais condições da economia
mercantil e se dá conta do mecanismo social da alienação.
Em suma, na
sociedade bem administrada, o ser humano não se pensa. A razão instrumental é
cega, não se enxerga, não reflete. Por isso, converteu-se, de mecanismo
promotor da emancipação, em uma nova – e poderosa – forma de barbárie, que só
pode ser combatida dialeticamente pelo trabalho paciente do próprio pensamento. Esta é a
tarefa que a teoria crítica se põe.
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