Como se sabe, a filosofia
hegeliana é fortemente influenciada pelo pensamento kantiano. Entretanto, uma
série de divergências separam radicalmente ambos os filósofos. Por exemplo, no
que diz respeito ao entendimento da ética. Hegel, é verdade, concorda com Kant
em relação à objetividade da lei moral. Para ambos, esta se impõe aos agentes
independentemente de seus desejos pessoais. Com efeito, o conteúdo da lei está
determinado por princípios racionais e pode ser, consequentemente, apreendido pela
razão. Entretanto, para além dessas convergências, há, em Hegel, uma forte
crítica ao “formalismo” da ética kantiana, crítica essa reveladora não apenas dos
eventuais limites dessa última, como também das linhas de força de seu próprio pensamento.
Kant, lembremos, estabelecia como
critério da moralidade de uma ação a possibilidade de sua máxima, “o princípio
subjetivo do querer”, isto é, a forma do ato, poder ser universalizada sem
contradição, servindo como “lei universal”. Assim, diz Kant, em certos casos, temos
apenas que imaginar que a máxima tenha aplicação geral para ver que ela implica
contradição – por exemplo, o suicídio. Em outros, porém, podemos imaginar a
máxima tendo aplicação geral, mas não podemos desejar, consistentemente, que a
tenha – como no caso da falsa promessa.
Destarte, uma máxima que não se mostre apta a reger as
ações de todos os agentes que se encontram nas mesmas circunstâncias gerais, ou
que não se pode desejar, consistentemente, que tenha aplicação geral, é
desqualificada por não poder servir como lei moral, ou seja, por não poder ter
a universalidade que constitui a característica formal da lei. Sendo assim, a prova da universalidade é essencialmente
negativa: quando aplicada com correção, ela mostra o que não se deve fazer, mas
se cala a respeito daquilo que, positivamente, poderíamos fazer.
É a partir dessa leitura que Hegel dirige suas críticas elementares
ao sistema ético kantiano. No §135 da Filosofia
do Direito, o filósofo assinala que a perspectiva de Kant bloqueia “qualquer
doutrina imanente de deveres”, e acrescenta: “Fixar-se na posição puramente
moral (como faria Kant), sem fazer a transição para a concepção da vida ética,
é reduzir esse ganho (a ênfase kantiana na infinita autonomia da vontade) a um
formalismo vazio, e a ciência da moral à pregação do dever pelo dever... Se a
definição do dever fica sendo a ausência de contradição, a correspondência
formal consigo mesmo (o que não é senão a indeterminidade abstrata
estabilizada), não é possível qualquer transição para a especificação de
deveres particulares. Tampouco, se um conteúdo particular para a ação entrar em
consideração, não há qualquer critério naquele princípio para decidir se se
trata ou não de um dever”.
Cumpre esclarecer que a “vida ética”, ou eticidade, ou
moralidade objetiva (Sittlichkeit), representa
o momento conclusivo do percurso dialético do espírito objetivo que tem como
início o direito abstrato e adquire consciência na interioridade subjetiva do
ponto de vista moral (Moralität). De
fato, a moralidade subjetiva é encarada por Hegel como uma mediação, um momento
de passagem para o domínio da externalização objetiva da consciência moral na
forma de instituições sociais, leis, governos etc.. Em outros termos, a
moralidade, segundo o uso que Hegel faz do termo, é um conceito unilateral, no
qual o Espírito não poderia se deter em seu processo de auto-reconhecimento. Por
isso, é preciso mostrar que o conceito puramente formal da moralidade é
inadequado, bem como tratar a moral formalista kantiana como fixação nesse
momento – unilateral – do desenvolvimento dialético da consciência plenamente
realizada, isto é, na Moralität.
Mas, a crítica hegeliana não se resume a este primeiro
aspecto. Na verdade, segundo o filósofo de Jena, a prova kantiana não seria
eficaz nem mesmo quando considerada como puramente negativa. De acordo com
Hegel, por si mesma, ela nada pode descartar nada, servindo, ato contínuo, como
justificativa para qualquer conduta. “A ausência de propriedade contém em si
tão pouca contradição quanto a não existência dessa ou daquela nação, família,
etc., ou a morte de toda a raça humana. Mas já foi estabelecido, em outras
bases, que a propriedade e a vida humana devem existir e ser respeitadas, pois
é de fato uma contradição cometer roubo ou assassinato. Uma contradição deve
ser contradição de uma coisa, e de algum conteúdo pressuposto desde o começo
como um princípio firme. É apenas a um princípio desse tipo, portanto, que uma
ação pode ser relacionada em termos de correspondência ou de contradição”.
Tomemos um exemplo do próprio Kant, presente na Crítica da razão prática, mas cujo espírito se fazia presente já na Fundamentação da metafísica dos costumes:
“A máxima ‘quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e
prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá’ não poderia nunca valer
como lei universal da natureza e concordar consigo mesma. Pelo contrário, ela
se contradiria necessariamente. Pois a universalidade de uma lei que
permitisse, a cada homem, que se julgasse em apuros, prometer o que lhe viesse
à ideia com intenção de o não cumprir, tornaria impossível a própria promessa e
a finalidade que com ela pudesse ter em vista; ninguém acreditaria em qualquer
coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como de vãos
enganos”;
Kant tem razão ao dizer que, nessas circunstâncias, toda a
instituição de fazer e aceitar promessas desapareceria. Contudo, alertados por
Hegel, seria legítimo perguntar: “e daí?”. Afinal, disso não parece seguir-se
necessariamente que um mundo sem promessas seja forçosamente um mundo
moralmente degradado. Na verdade, seguindo o raciocínio hegeliano, Kant
demonstraria apenas o fato de não se poder aceitar a instituição de cumprir
promessas e rejeitar, ao mesmo tempo, algo que ela necessariamente implica, a
saber, que uma pessoa que fez uma promessa tente realmente cumpri-la.
Hegel, nesse sentido, identifica a existência de um
pressuposto na argumentação kantiana: o fato de que seria correto cumprir as
promessas, ou mesmo que devem existir promessas. Ora, essa conclusão deveria, a
confiar no espírito da filosofia de Kant, ser justificada pela prova da
universalidade – o que ela não é. Assim, completa Hegel: “A proposição: ‘age
como se a máxima de tua ação pudesse ser fixada como um princípio universal’
seria admirável se já tivéssemos princípios de conduta determinados. Dado o
conteúdo, então certamente a aplicação do princípio seria um assunto simples.
No caso de Kant, entretanto, o próprio princípio não está disponível, e seu
critério de não contradição não produz coisa alguma, pois onde nada há,
tampouco pode haver contradição”;
Dessa forma, a prova da
universalidade, ou da ausência de contradições, teria valor apenas nas
circunstâncias em que o agente moral já estivesse comprometido com um princípio
moral. Mas, como fixar este princípio prévio – enquanto conceito racional universal
– na interioridade absoluta da moralidade subjetiva? Impossível. Logo, o que
Hegel sinaliza é que não se pode dar um conteúdo definido à moralidade no nível
da pura interioridade. Para fazê-lo, seria preciso superá-la (como aufhebung dialética) em direção à ideia
da sociedade organizada (cf. §137), isto é, à “vida ética”, Sittlichkeit, a etapa dialeticamente superior do Espírito objetivo.
Essa discussão, naturalmente, está longe de esgotar o
diálogo crítico entre ambos os autores. Há ainda outros elementos que opõem suas
concepções – como a relação de afastamento da natureza, pressuposta pela
moralidade kantiana e criticada por Hegel na Fenomenologia do espírito – que, em outra oportunidade, poderemos
retomar.
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