segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Pedras que rolam

No último sábado, tive a felicidade de assistir ao show dos Rolling Stones em São Paulo. Na viagem de volta, ainda extasiado, fiquei tecendo alguns paralelos, mezzo pessoais, mezzo filosóficos, comparando aquela apresentação com outro grande show que vi há alguns anos (em 2012, para ser mais preciso): o do Kiss.

Como se sabe, a banda norte-americana é caracterizada, dentre outras coisas, por proporcionar um dos maiores espetáculos ao vivo da face da Terra. E não é exagero. Porque, mais do que um show de rock, trata-se de um verdadeiro teatro, no melhor sentido do termo: sem que seja mecânico, cada detalhe é refletido, cada movimento – me perdoem o clichê – é friamente calculado. Desde a descida na introdução, ao som do riff de Detroit rock city, até o final apoteótico, com o hino Rock and roll all nite, tudo serve para criar uma singularíssima experiência sinestésica, na qual os sentidos são constantemente embaralhados, visão e audição se interpenetram e, para falar como Merleau-Ponty, a partir de certo ponto, não sabe sabe mais onde termina uma e começa a outra.

Por exemplo, naquela ocasião, tive a oportunidade de ficar próximo ao mini-palco onde Paul Stanley aterrissa e canta Love gun. Desnecessário dizer que a imagem de Paul voando em “minha” direção jamais será esquecida. Mas, mais do que isso, ela representa bem a sinestesia que mencionei acima: naquele momento, em meio aos acordes poderosos da música, não sabia se via, ouvia, cantava, ou tentava me aproximar do palco... Na verdade, fazia tudo ao mesmo tempo, literalmente tragado, envolvido pela atmosfera cuidadosamente criada por aquela expressão artística ímpar.

O caso dos Stones é diferente. É claro, igualmente, uma superprodução, mas que se encaminha por outra via. Mick, Keith, Ron e Charlie parecem quatro jovens que acabaram de sair do bar, e pegaram seus instrumentos para animar a galera. “O que vamos tocar?”, “Lembra daquela?”, “Me dá um Si maior”, e pronto: Jumpin' Jack Flash explode diante da audiência, convidando-nos para a festa.

A visível alegria ao executar cada canção, a simplicidade e a desenvoltura no palco, são sinais inequívocos de que aqueles quatro senhores estão ali como se estivessem em uma roda de amigos celebrando a vida. Nesse sentido, e para retomar um breve interlúdio filosófico, o show dos Stones é quase uma experiência estoica: o chamado a um completo desligamento do mundo, das preocupações, dos medos, das angústias, e um convite a nos conectar com aquilo que realmente deveria importar: a alegria de viver! It's only rock'n'roll, but...

Não, não me atreveria a dizer qual o melhor. Na verdade, não há. São apenas duas representações diferentes de uma mesa essência, de uma mesma atitude diante do mundo, e que apenas a arte – e o rock, em particular – pode proporcionar. Por isso, fico feliz apenas por ter a sorte de tê-las vivenciado.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Rolling Stones - Start me up

Hoje e sábado acontecem mais dois shows dos Rolling Stones no Brasil, dessa vez em São Paulo. E, para mim, trata-se de uma ocasião especial, pois, no final de semana, terei a oportunidade de ver, pela primeira vez, esta banda extraordinária. Então, para aquecer, vamos com um clássico da banda inglesa (e um clipe muito divertido, diga-se).


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Escassez, economia e vida social em Sartre e Marx


A noção de escassez (rareté), estabelecida na Crítica da razão dialética, é, sem dúvida, das mais controversas do universo teórico de Sartre. Segundo o filósofo, o que marcaria o início de nossa História não seria apenas o fato de o homem buscar satisfazer suas necessidades, como Marx sugeria, mas a impossibilidade de satisfazê-las plenamente. De fato, haveria um descompasso entre os recursos naturais/materiais forçosamente finitos e as necessidades humanas tendencialmente infinitas. Embora não seja necessária (poderia haver um planeta sem escassez, diz Sartre), a escassez seria, na prática, universal. Em nossa sociedade, a escassez demarca o limite externo da ação prática dos homens no mundo. Na visão de Sartre, os indivíduos, organismos “primeiramente separados”, se unem para lutar contra a escassez. Criam objetos, ferramentas etc. com o intuito de dominar a natureza e minimizar a penúria originária, relaxando a pressão por ela exercida. Criam, por conseguinte, as condições materiais de sua reprodução. Numa palavra, fazem história.

A escassez fundamental promove uma unidade negativa de todos enquanto incompletude, efetiva “impossibilidade de viver”. O resultado é dramático, na medida em que a própria coexistência, que a princípio serviria para minimizá-la ou superá-la, com o passar do tempo devém igualmente impraticável. Sob a égide da escassez, explica Sartre, o ser humano se torna um excesso para cada outro, um consumidor em potencial de algo que não existe para todos, que não poderá ser consumido mais tarde etc. Cada um passa, assim, a ser Outro-que-não-eu, um ser inumano, alienígena; um perigo para mim na exata medida em que sou um perigo para o outro. Onde a reciprocidade é alterada pela escassez cria-se o anti-homem: o outro é visto como um excesso, redundante, de trop.

Cumpre ressalvar que não se trata de estabelecer uma essência humana ou de afirmar que o homem seja, naturalmente, “lobo do próprio homem”, como Hobbes acreditava. Na verdade, diz Sartre, “é preciso compreender ao mesmo tempo que a inumanidade do homem não vem de sua natureza, que, longe de excluir sua humanidade, só pode ser compreendida por esta, mas que, enquanto o reino da escassez não tiver chegado ao termo, haverá em cada homem e em todos uma estrutura inerte de inumanidade, que, em suma, nada mais é do que a negação material enquanto ela é interiorizada”.

Assim, em um quadro de escassez, o homem “é objetivamente constituído como inumano e essa inumanidade se traduz na práxis pela apreensão do mal como estrutura do Outro”. Em um segundo momento, a negação externa da natureza em relação ao ser humano é internalizada por cada um, dando origem a todas as formas de luta e violência. A violência, segundo Sartre, é a escassez interiorizada. Logo, até um eventual fim do reino de carências insatisfeitas, apenas ela poderia fundamentar nossa ética.

Diante dessas considerações tecidas duas observações se impõem. Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de Sartre, visando se acomodar nas coordenadas do materialismo histórico (este é o sentido último da Crítica da razão dialética), utilizar uma categoria consagrada pela economia política clássica (“burguesa”) para impulsionar sua dialética. Afinal de contas, é justamente a ideia de uma inadequação a priori entre meios e fins, a finitude de todos os recursos diante das necessidades humanas potencialmente infinitas que, na leitura daqueles economistas, justificaria a organização social a partir de uma economia do tipo mercantil, a única supostamente orientada de modo racional, pelo princípio do “uso eficiente dos recursos escassos”. Ora, o que o marxismo demonstra é que essa inadequação, que rege os princípios mercadológicos, longe de ser causa de uma determinada organização econômica, é, na verdade, sua irremediável consequência: a forma que assume essa relação entre fins e meios em uma dada sociedade, a partir da realidade de suas forças produtivas e de suas relações de produção.

Deste excêntrico alinhamento decorre, em segundo lugar, uma universalização da escassez que não encontra respaldo em certas formações econômico-sociais. O antropólogo Marshall Sahlins, por exemplo, demonstra, em Stone Age Economics, que, ao contrário do que a antropologia econômica apregoava, a sociedade dos antigos caçadores-coletores não era uma sociedade marcada pela falta, mas pela afluência. Conforme explica Sahlins, a economia das sociedades paleolíticas não poderia ser definida como uma economia de subsistência. Pelo contrário: analisando dados etnográficos e pesquisas de campo feitas com diversas tribos ao redor do globo, Sahlins conclui que, trabalhando pouco (três a quatro horas por dia), os nômades caçadores-coletores viveriam, antes, em uma economia de abundância.

Isso não significa que não houvesse momentos de penúria e privação; ocorre que estes momentos eram contingentes, acidentais. É verdade que o “modo de produção doméstico”, típico do período, se caracteriza por uma sub-produção, quer dizer, pelo não-uso de toda a capacidade produtiva disponível (esta mesma muito baixa). Mas isso se adequaria, segundo Sahlins, com o modo de vida extremamente ascético dos membros dessa sociedade (chamada de “via Zen”), o que a tornaria, de fato, afluente. Dito de outro modo, as necessidades de todos podiam ser facilmente satisfeitas porque suas necessidades eram extremamente limitadas. Mas essa prodigalidade nada teria a ver com o medo de alguma forma de escassez natural. Como observa Sahlins, essas sociedades estavam longe de conhecer estruturas como o “mercado”, em que a escassez se torna uma preocupação real. Tampouco ecoa o asceticismo burguês do início do capitalismo. Diz Sahlins: “Adotando a estratégia Zen, uma pessoa pode gozar de uma plenitude material sem paralelo – com um baixo padrão de vida. Isso, acredito, descreve os caçadores. E ajuda a explicar alguns de seus mais curiosos comportamentos econômicos: sua ‘prodigalidade’, por exemplo – a inclinação para consumir de uma vez todos os estoques disponíveis, como se eles o tivessem produzido. Libertos da obsessão do mercado pela escassez, as propensões econômicas dos caçadores podem ser mais consistentemente predicadas pela abundância do que as nossas próprias”.

Essas observações, de fato, não autorizam a estender a escassez como um dado presente em toda e qualquer sociedade humana, especialmente do modo trágico operado por Sartre. Curiosamente, Marx e Engels já o tinham notado, inclusive através da análise parcial do assim chamado “comunismo primitivo”, sendo criticados pelo filósofo francês justamente por minimizarem o papel da escassez na conformação da vida social, em especial desses povos.

A escassez – com a violência dela decorrente – não é, para Marx, uma determinação natural intrínseca à vida material, mas uma construção social, ligada ao grau de desenvolvimento das forças produtivas, em consonância com as relações de propriedade estabelecidas numa determinada sociedade. É verdade que poderia ser alegado, contra Marx e a favor de Sartre, que a escassez como um dado natural tem se verificado recentemente, depois de séculos de depredação capitalista, através de pesquisas que demonstram a humanidade prestes a atingir os limites da “sustentabilidade” do planeta. Marx, sem dúvida impregnado pelo espírito de sua época, jamais pautou seriamente a questão das limitações intrínsecas de nossos recursos naturais, confiando no aumento crescente e aparentemente ilimitado das forças produtivas que forneceriam o pré-requisito material da passagem do capitalismo ao comunismo. Ora, uma vez descartada essa possibilidade, um crítico poderia concluir que o projeto comunista marxiano não encontraria mais lugar diante da realidade do século XXI. Há, aliás, quem se baseie nessa tese para argumentar que o planeta não comportaria um padrão de vida minimamente decente para todos, uma vez que, para isso, a produção deveria aumentar a tal ponto que terminaria por esgotar rapidamente com todos os recursos terrestres.

Não obstante, convém fazer algumas ressalvas, que podem ajudar a situar melhor o problema: em primeiro lugar, que o desenvolvimento crescente das forças produtivas, para Marx, seria positivo na medida em que possibilitasse aos homens tomarem para si o controle do processo de produção, isto é, superassem a alienação. Provavelmente, Marx hoje não objetaria que o desenvolvimento contínuo das forças produtivas sob a égide do capital – portanto, sob o controle de uma lei cega, encerrada em si mesma – potencialmente coloca a vida humana em risco diante dos limites evidentes do planeta. Em segundo lugar, Marx é um dos primeiros teóricos do capitalismo a observar que, neste regime, a ciência foi definitivamente incorporada ao processo produtivo. Sabe-se que o desenvolvimento científico possibilita, atualmente, uma utilização e uma reutilização muito mais eficiente dos recursos naturais do que, por exemplo, em décadas passadas. Neste caso, não parece equivocado supor que a ciência poderia criar formas de harmonização entre o requisito do desenvolvimento das forças produtivas e os limites dos recursos planetários – o que, em alguma medida (isto é, na medida em que interessa à reprodução capitalista), já acontece, mas que poderia ser exponencialmente aprofundada se a ciência pudesse se desamarrar da lógica do mercado.

Ademais, é preciso lembrar que, para Marx, produção, distribuição e consumo formam uma totalidade. A produção, diz o filósofo nos Grundrisse, “cria os consumidores. (...). [Ela] não apenas fornece à necessidade um material, mas também uma necessidade ao material”. Assim, é plausível supor que uma produção planejada, racional e democraticamente orientada, poderia dar ensejo a uma dinâmica de consumo diferente da contemporânea (aquela que, no linguajar cotidiano, se costuma chamar de “consumismo”) – o que os críticos de direita do marxismo não conseguem supor, uma vez que associam “o homem”, com suas necessidades e desejos “inatos”, ao homo economicus (neo)liberal. De fato, essa nova forma de produção poderia, inclusive, prescindir da lógica do aumento contínuo da produção que rege a economia capitalista, tendo em vista que nosso atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas (em nível global) poderia garantir, já hoje, ao menos a satisfação das necessidades básicas de todos os habitantes do planeta, caso a distribuição de bens, recursos e tecnologias fosse pautada por uma lógica internacionalmente mais igualitária. Assim, mesmo diante dessa realidade que nem Sartre, e muito menos Marx, conheceram, não parece adequado classificar a escassez em si como um problema, como depreendemos da Crítica da razão dialética. Tampouco como um impedimento a priori de se pensar uma nova forma superior, mais justa e equilibrada de organização social. Com efeito, a escassez de parte dos recursos terrestres torna-se efetivamente problemática – e fonte de violência, conflitos, guerras etc. – na medida em que ela é originada pela lógica inumana do capital e, ao mesmo tempo, serve à sua perpetuação.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Meditação sobre o tempo

Uma reflexão em versos sobre este tema tão profundo e incompreendido (e que, também por isso, tantas vezes já surgiu por aqui). O poema é de Paul Fleming, poeta alemão do seculo XVII.













Meditação sobre o tempo

por Paul Fleming
Tradução: Augusto de Campos

Vives no Tempo sem saber o que é o Tempo;
Ignoras de onde vens e no que te deténs.
Sabes apenas que num Tempo foste feito
E que num outro Tempo ainda serás desfeito.
Mas o que foi o Tempo que te trouxe incluso?
E o que há de ser aquele que te faz sem uso?
O Tempo é sim e não, o homem se multiplica,
Mas o que é este Sim-e-Não ninguém explica.
O Tempo morre em si e a si mesmo renasce.
O de que tu e eu viemos, de nós mesmos nasce.
O homem está no Tempo e o Tempo está no homem,
Mas o Tempo resiste enquanto o homem some.
O Tempo é o que és e és o que é o Tempo,
Embora tenhas menos do que o Tempo tem.
Ah, se esse outro Tempo, sem Tempo, chegasse
E a nós, de nosso Tempo, esse Tempo arrancasse,
E de nós mesmos, nós, para sermos também
Como esse Tempo, que nenhum Tempo contém.

Gedanken über die Zeit

Ihr lebet in der Zeit und kennt doch keine Zeit;
so wisst, ihr Menschen, nicht von und in was ihr seid.
Dies wisst ihr, dass ihr seid in einer Zeit geboren
und dass ihr werdet auch in einer Zeit verloren.
Was aber war die Zeit, die euch in sich gebracht?
Und was wird diese sein, die euch zu nichts mehr macht?
Die Zeit ist was und nichts, der Mensch in gleichem Falle,
doch was dasselbe was und nichts sei, zweifeln alle.
Die Zeit, die stirbt in sich und zeugt sich auch aus sich.
Dies kömmt aus mir und dir, von dem du bist und ich.
Der Mensch ist in der Zeit; sie ist in ihm ingleichen,
doch aber muss der Mensch, wenn sie noch bleibet, weichen.
Die Zeit ist, was ihr seid, und ihr seid, was die Zeit,
nur dass ihr wenger noch, als was die Zeit ist, seid.
Ach dass doch jene Zeit, die ohne Zeit ist, käme
und uns aus dieser Zeit in ihre Zeiten nähme,
und aus uns selbsten uns, dass wir gleich könnten sein,
wie der itzt jener Zeit, die keine Zeit geht ein.