A noção de
escassez (
rareté), estabelecida na
Crítica da razão dialética,
é, sem dúvida, das mais controversas do universo teórico de Sartre. Segundo o
filósofo, o que marcaria o início de nossa História não seria apenas o fato de
o homem buscar satisfazer suas necessidades, como Marx sugeria, mas a
impossibilidade de satisfazê-las plenamente. De fato, haveria um descompasso
entre os recursos naturais/materiais forçosamente finitos e as necessidades
humanas tendencialmente infinitas. Embora não seja necessária (poderia haver um
planeta sem escassez, diz Sartre), a escassez seria, na prática, universal. Em
nossa sociedade, a escassez demarca o
limite externo da ação
prática dos homens no mundo. Na visão de Sartre, os indivíduos,
organismos “primeiramente separados”, se unem para lutar contra a escassez.
Criam objetos, ferramentas etc. com o intuito de dominar a natureza e minimizar
a penúria originária, relaxando a pressão por ela exercida. Criam, por
conseguinte, as condições materiais de sua reprodução. Numa palavra, fazem
história.
A escassez
fundamental promove uma unidade negativa de todos enquanto incompletude,
efetiva “impossibilidade de viver”. O resultado é dramático, na medida em que a
própria coexistência, que a princípio serviria para minimizá-la ou superá-la,
com o passar do tempo devém igualmente impraticável. Sob a égide da escassez,
explica Sartre, o ser humano se torna um excesso para cada outro, um consumidor
em potencial de algo que não existe para todos, que não poderá ser consumido
mais tarde etc. Cada um passa, assim, a ser Outro-que-não-eu, um ser inumano,
alienígena; um perigo para mim na exata medida em que sou um perigo para o
outro. Onde a reciprocidade é alterada pela escassez cria-se o anti-homem:
o outro é visto como um excesso, redundante, de trop.
Cumpre ressalvar
que não se trata de estabelecer uma essência humana ou de
afirmar que o homem seja, naturalmente, “lobo do
próprio homem”, como Hobbes acreditava. Na verdade, diz Sartre, “é preciso
compreender ao mesmo tempo que a inumanidade do homem não vem
de sua natureza, que, longe de excluir sua humanidade, só pode ser compreendida
por esta, mas que, enquanto o reino da escassez não tiver
chegado ao termo, haverá em cada homem e em todos uma
estrutura inerte de inumanidade, que, em suma, nada mais é do que a negação
material enquanto ela é interiorizada”.
Assim, em um
quadro de escassez, o homem “é
objetivamente constituído como
inumano e essa inumanidade se traduz na
práxis pela apreensão
do mal como estrutura do Outro”. Em um segundo momento, a negação externa da
natureza em relação ao ser humano é internalizada por cada um, dando origem a
todas as formas de luta e violência. A violência, segundo Sartre, é a
escassez
interiorizada. Logo, até um eventual fim do reino de carências
insatisfeitas, apenas ela poderia fundamentar nossa ética.
Diante dessas
considerações tecidas duas observações se impõem. Em primeiro lugar, chama a
atenção o fato de Sartre, visando se acomodar nas coordenadas do materialismo
histórico (este é o sentido último da Crítica da razão dialética),
utilizar uma categoria consagrada pela economia política clássica (“burguesa”)
para impulsionar sua dialética. Afinal de contas, é justamente a ideia de uma
inadequação a priori entre meios e fins, a finitude de todos
os recursos diante das necessidades humanas potencialmente infinitas que, na
leitura daqueles economistas, justificaria a organização social a partir de uma
economia do tipo mercantil, a única supostamente orientada de modo racional,
pelo princípio do “uso eficiente dos recursos escassos”. Ora, o que o marxismo
demonstra é que essa inadequação, que rege os princípios mercadológicos, longe
de ser causa de uma determinada organização econômica, é, na
verdade, sua irremediável consequência: a forma que assume essa
relação entre fins e meios em uma dada sociedade, a partir da realidade de suas
forças produtivas e de suas relações de produção.
Deste excêntrico
alinhamento decorre, em segundo lugar, uma universalização da escassez que não
encontra respaldo em certas formações econômico-sociais. O antropólogo Marshall
Sahlins, por exemplo, demonstra, em Stone Age Economics, que,
ao contrário do que a antropologia econômica apregoava, a sociedade dos antigos
caçadores-coletores não era uma sociedade marcada pela falta, mas pela afluência.
Conforme explica Sahlins, a economia das sociedades paleolíticas
não poderia ser definida como uma economia de subsistência. Pelo contrário:
analisando dados etnográficos e pesquisas de campo feitas com diversas tribos
ao redor do globo, Sahlins conclui que, trabalhando pouco (três a quatro horas
por dia), os nômades caçadores-coletores viveriam, antes, em uma economia de
abundância.
Isso não
significa que não houvesse momentos de penúria e privação; ocorre que estes
momentos eram contingentes, acidentais. É verdade que o “modo de produção
doméstico”, típico do período, se caracteriza por uma sub-produção, quer dizer,
pelo não-uso de toda a capacidade produtiva disponível (esta mesma muito
baixa). Mas isso se adequaria, segundo Sahlins, com o modo de vida extremamente
ascético dos membros dessa sociedade (chamada de “via Zen”), o que a tornaria,
de fato, afluente. Dito de outro modo, as necessidades de todos podiam ser
facilmente satisfeitas porque suas necessidades eram extremamente limitadas.
Mas essa prodigalidade nada teria a ver com o medo de alguma forma de
escassez natural. Como observa Sahlins, essas sociedades estavam longe de
conhecer estruturas como o “mercado”, em que a escassez se torna uma
preocupação real. Tampouco ecoa o asceticismo burguês do início do capitalismo.
Diz Sahlins: “Adotando a estratégia Zen, uma pessoa pode gozar de uma plenitude
material sem paralelo – com um baixo padrão de vida. Isso, acredito, descreve
os caçadores. E ajuda a explicar alguns de seus mais curiosos comportamentos
econômicos: sua ‘prodigalidade’, por exemplo – a inclinação para consumir de
uma vez todos os estoques disponíveis, como se eles o tivessem produzido.
Libertos da obsessão do mercado pela escassez, as propensões econômicas dos
caçadores podem ser mais consistentemente predicadas pela abundância do que as
nossas próprias”.
Essas
observações, de fato, não autorizam a estender a escassez como um dado presente
em toda e qualquer sociedade humana, especialmente do modo trágico operado
por Sartre. Curiosamente, Marx e Engels já o tinham notado, inclusive através
da análise parcial do assim chamado “comunismo primitivo”, sendo criticados
pelo filósofo francês justamente por minimizarem o papel da escassez na
conformação da vida social, em especial desses povos.
A escassez – com
a violência dela decorrente – não é, para Marx, uma determinação natural
intrínseca à vida material, mas uma construção social, ligada ao grau de
desenvolvimento das forças produtivas, em consonância com as relações de
propriedade estabelecidas numa determinada sociedade. É verdade que poderia ser
alegado, contra Marx e a favor de Sartre, que a escassez como um dado natural
tem se verificado recentemente, depois de séculos de depredação capitalista,
através de pesquisas que demonstram a humanidade prestes a atingir os limites
da “sustentabilidade” do planeta. Marx, sem dúvida impregnado pelo espírito de
sua época, jamais pautou seriamente a questão das limitações intrínsecas de
nossos recursos naturais, confiando no aumento crescente e aparentemente
ilimitado das forças produtivas que forneceriam o pré-requisito material da
passagem do capitalismo ao comunismo. Ora, uma vez descartada essa
possibilidade, um crítico poderia concluir que o projeto comunista marxiano não
encontraria mais lugar diante da realidade do século XXI. Há, aliás, quem se
baseie nessa tese para argumentar que o planeta não comportaria um padrão de
vida minimamente decente para todos, uma vez que, para isso, a produção deveria
aumentar a tal ponto que terminaria por esgotar rapidamente com todos os
recursos terrestres.
Não obstante,
convém fazer algumas ressalvas, que podem ajudar a situar melhor o problema: em
primeiro lugar, que o desenvolvimento crescente das forças produtivas, para
Marx, seria positivo na medida em que possibilitasse aos homens tomarem para si
o controle do processo de produção, isto é, superassem a alienação.
Provavelmente, Marx hoje não objetaria que o desenvolvimento contínuo das
forças produtivas sob a égide do capital – portanto, sob o controle de uma lei
cega, encerrada em si mesma – potencialmente coloca a vida humana em
risco diante dos limites evidentes do planeta. Em segundo lugar, Marx é um dos
primeiros teóricos do capitalismo a observar que, neste regime, a ciência foi definitivamente
incorporada ao processo produtivo. Sabe-se que o desenvolvimento científico
possibilita, atualmente, uma utilização e uma reutilização muito mais eficiente
dos recursos naturais do que, por exemplo, em décadas passadas. Neste caso, não
parece equivocado supor que a ciência poderia criar formas de harmonização
entre o requisito do desenvolvimento das forças produtivas e os limites dos
recursos planetários – o que, em alguma medida (isto é, na medida em que
interessa à reprodução capitalista), já acontece, mas que poderia ser
exponencialmente aprofundada se a ciência pudesse se desamarrar da lógica do
mercado.
Ademais, é
preciso lembrar que, para Marx, produção, distribuição e consumo formam uma
totalidade. A produção, diz o filósofo nos
Grundrisse, “cria os
consumidores. (...). [Ela] não apenas fornece à necessidade um material, mas
também uma necessidade ao material”. Assim, é plausível supor que uma produção
planejada, racional e democraticamente orientada, poderia dar ensejo a uma
dinâmica de consumo diferente da contemporânea (aquela que, no linguajar
cotidiano, se costuma chamar de “consumismo”) – o que os críticos de direita do
marxismo não conseguem supor, uma vez que associam “o homem”, com suas
necessidades e desejos “inatos”, ao
homo economicus (neo)liberal.
De fato, essa nova forma de produção poderia, inclusive, prescindir da lógica
do aumento contínuo da produção que rege a economia capitalista, tendo em vista
que nosso atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas (em nível
global) poderia garantir, já hoje, ao menos a satisfação das necessidades
básicas de todos os habitantes do planeta, caso a distribuição de bens,
recursos e tecnologias fosse pautada por uma lógica internacionalmente mais
igualitária. Assim, mesmo diante dessa realidade que nem Sartre, e muito menos
Marx, conheceram, não parece adequado classificar a escassez em si como um
problema, como depreendemos da
Crítica da razão dialética. Tampouco
como um impedimento
a priori de se pensar uma nova forma
superior, mais justa e equilibrada de organização social. Com efeito, a
escassez de parte dos recursos terrestres torna-se efetivamente problemática –
e fonte de violência, conflitos, guerras etc. – na medida em que ela é
originada pela lógica inumana do capital e, ao mesmo tempo, serve à sua
perpetuação.