Um dos pontos altos da filosofia de Hegel é a forma pela qual ele estabelece um vínculo ontológico entre a ipseidade – o ser-si-mesmo – e a alteridade – o outro-que-não-eu. Particularmente em sua Fenomenologia do Espírito, o filósofo sublinha a sina dolorosa da consciência que, para superar a pobreza de seu estado natural em direção ao saber, lida a todo instante com sua própria negação. Segundo Hegel, todo progresso é dialético porque inevitavelmente marcado com o sinal do negativo: não há conhecimento possível sem que experimentemos o outro, o diferente.
Assim, o trajeto da consciência hegeliana se caracteriza por um permanente arrancar-se de si mesmo, que só é possível pela intervenção da alteridade. Sem contato com o outro, ou, mais precisamente, sem a experiência do outro (no duplo sentido do genitivo, isto é, como “experienciar” o outro e sem aquilo que o outro traz a mim), nada haveria, senão uma consciência ensimesmada e, por definição, estanque.
O advento da globalização neoliberal insinuava, dentre outras coisas (ao menos, de acordo com seus ideólogos), a construção de um “mundo sem fronteiras”, “multicultural” e no qual, portanto, a alteridade seria vivenciada em seu mais profundo sentido. Passadas algumas décadas desse fenômeno, porém, o que se vê é exatamente o oposto: a solidificação de grupos cada vez mais autocentrados, sem qualquer abertura a uma experiência real – naqueles termos consagrados por Hegel – do outro. Esse fenômeno, cujas consequências políticas são visíveis no recrudescimento de discursos ultranacionalistas, xenófobos etc., se deixa transparecer cotidianamente nas “redes sociais”.
Quando surgiram, novamente, havia a expectativa de que tais ferramentas pudessem se materializar como uma via de acesso ao outro, ao diferente, à opinião contrária, aos valores e formas de vida com os quais não estamos acostumados. Em pouco tempo, porém, o que se nota é que as redes criaram bolhas, dentro das quais nos movemos em segurança e que, por sua configuração, bloqueiam qualquer traço de alteridade. Com efeito, o aparecimento da divergência, inevitável no fluxo contínuo de informações digitais, não é motivo de crescimento ou progresso, de diálogo, de abertura ao novo. Antes, é principalmente motivo de reafirmação de uma identidade fechada. Não por acaso, a forma mais comum de tratar o outro, neste cenário, é pela via de sua exclusão, real ou simbólica. Isto é, pelo desejo de seu extermínio físico ou enquanto voz ativa. É o triunfo do ódio, ou seja, aquele desejo de eliminar completamente
o outro – isto é, todos os outros, como diria Sartre.
Feito esse brevíssimo diagnóstico, resta estabelecer suas causas. Nos limites desse espaço, contudo, apenas uma indicação de um dos possíveis caminhos a seguir seria exequível. Aliás, ela já foi avançada em um texto que tive a oportunidade de publicar na “Coluna ANPOF” no ano passado, e reproduzido aqui no blog (leia
aqui), e de cujo aprofundamento pretendo me ocupar no próximo período.
Trata-se do processo de ultrassubjetivação, delineado, dentre outros, por Pierre Dardot e Christian Laval, além de Franck Fischbach, que acompanha a afirmação da racionalidade neoliberal, deslocando a lógica da competição empresarial também para o âmbito da vida privada e da subjetivação. De um lado, esse processo visa reforçar o desligamento do indivíduo de qualquer vínculo efetivo com o mundo, em nome de sua constante mobilidade, mas, contraditoriamente afrouxando a construção de sua própria identidade. De outro, face à impossibilidade de se sustentar esse desligamento radical – na medida em que impede qualquer processo de subjetivação efetiva –, se fortalece aquilo que Immanuel Wallerstein denominou de “grupismo”. Ou seja, a resposta para o avanço de um individualismo radical – fruto da exacerbação daquela racionalidade competitiva, típica do meio empresarial – é a busca por um ponto de apoio que freie a instabilidade promovida pela ultrassubjetivação: este apoio é encontrado na formação de grupos que, por definição, constroem sua identidade a partir de uma resoluta oposição com seu outro.
Nesse sentido, as redes sociais favorecem o estabelecimento desse nexo interindividual, que surge como um amparo diante da extrema fluidez do mundo contemporâneo e sua lógica competitiva. Ao mesmo tempo, se essa hipótese é válida, a interiorização dessa racionalidade hiper-individualista, que inclusive precisa rejeitar qualquer traço de dor e sofrimento em nome da celebração da felicidade permanente (o “sucesso”), torna o “grupismo” um forte antídoto ao medo que inevitavelmente acompanha a experiência da alteridade. Assim, as redes apenas dão vazão a um temor cuja origem, antes de ser exclusivamente psicológica, é causada pela própria dinâmica social que põe os indivíduos em competição permanente contra todos (na impossibilidade de universalização do sucesso, o outro tende sempre a aparecer como uma ameaça potencial) e contra si (a ideologia do crescimento pessoal – este entendido como melhor adaptação às exigências do mercado – e consequente sucesso/felicidade).
O brilhante Umberto Eco, pouco antes de morrer, disse que as redes sociais deram voz a milhões de idiotas. Corroborando a tese do escritor italiano, pode-se acrescentar que o idiota da rede social o é, primeiramente, no sentido original do vocábulo: a pessoa fechada sobre si mesma, típica de nossa era. Enfim, o bloqueio à experiência da alteridade aparece como sintoma do desconforto causado pela exigência impraticável de uma competição radical, no qual os indivíduos se relacionam entre si enquanto inimigos. Seu resultado mais devastador é um esvanecimento da ipseidade em uma perda completa de qualquer sentido de empatia, solidariedade e humanidade. Um Eu que nunca é Nós, parafraseando Hegel, porque sequer chega a ser Eu.