Um dos pontos altos da filosofia de Hegel é a forma pela qual ele estabelece um vínculo ontológico entre a ipseidade – o ser-si-mesmo – e a alteridade – o outro-que-não-eu. Particularmente em sua Fenomenologia do Espírito, o filósofo sublinha a sina dolorosa da consciência que, para superar a pobreza de seu estado natural em direção ao saber, lida a todo instante com sua própria negação. Segundo Hegel, todo progresso é dialético porque inevitavelmente marcado com o sinal do negativo: não há conhecimento possível sem que experimentemos o outro, o diferente.
Assim, o trajeto da consciência hegeliana se caracteriza por um permanente arrancar-se de si mesmo, que só é possível pela intervenção da alteridade. Sem contato com o outro, ou, mais precisamente, sem a experiência do outro (no duplo sentido do genitivo, isto é, como “experienciar” o outro e sem aquilo que o outro traz a mim), nada haveria, senão uma consciência ensimesmada e, por definição, estanque.
O advento da globalização neoliberal insinuava, dentre outras coisas (ao menos, de acordo com seus ideólogos), a construção de um “mundo sem fronteiras”, “multicultural” e no qual, portanto, a alteridade seria vivenciada em seu mais profundo sentido. Passadas algumas décadas desse fenômeno, porém, o que se vê é exatamente o oposto: a solidificação de grupos cada vez mais autocentrados, sem qualquer abertura a uma experiência real – naqueles termos consagrados por Hegel – do outro. Esse fenômeno, cujas consequências políticas são visíveis no recrudescimento de discursos ultranacionalistas, xenófobos etc., se deixa transparecer cotidianamente nas “redes sociais”.

Feito esse brevíssimo diagnóstico, resta estabelecer suas causas. Nos limites desse espaço, contudo, apenas uma indicação de um dos possíveis caminhos a seguir seria exequível. Aliás, ela já foi avançada em um texto que tive a oportunidade de publicar na “Coluna ANPOF” no ano passado, e reproduzido aqui no blog (leia aqui), e de cujo aprofundamento pretendo me ocupar no próximo período.
Trata-se do processo de ultrassubjetivação, delineado, dentre outros, por Pierre Dardot e Christian Laval, além de Franck Fischbach, que acompanha a afirmação da racionalidade neoliberal, deslocando a lógica da competição empresarial também para o âmbito da vida privada e da subjetivação. De um lado, esse processo visa reforçar o desligamento do indivíduo de qualquer vínculo efetivo com o mundo, em nome de sua constante mobilidade, mas, contraditoriamente afrouxando a construção de sua própria identidade. De outro, face à impossibilidade de se sustentar esse desligamento radical – na medida em que impede qualquer processo de subjetivação efetiva –, se fortalece aquilo que Immanuel Wallerstein denominou de “grupismo”. Ou seja, a resposta para o avanço de um individualismo radical – fruto da exacerbação daquela racionalidade competitiva, típica do meio empresarial – é a busca por um ponto de apoio que freie a instabilidade promovida pela ultrassubjetivação: este apoio é encontrado na formação de grupos que, por definição, constroem sua identidade a partir de uma resoluta oposição com seu outro.

O brilhante Umberto Eco, pouco antes de morrer, disse que as redes sociais deram voz a milhões de idiotas. Corroborando a tese do escritor italiano, pode-se acrescentar que o idiota da rede social o é, primeiramente, no sentido original do vocábulo: a pessoa fechada sobre si mesma, típica de nossa era. Enfim, o bloqueio à experiência da alteridade aparece como sintoma do desconforto causado pela exigência impraticável de uma competição radical, no qual os indivíduos se relacionam entre si enquanto inimigos. Seu resultado mais devastador é um esvanecimento da ipseidade em uma perda completa de qualquer sentido de empatia, solidariedade e humanidade. Um Eu que nunca é Nós, parafraseando Hegel, porque sequer chega a ser Eu.
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