Na semana passada, a partir da divulgação das delações da Odebrecht, o Brasil parece ter se dado conta de uma verdade tão velha quanto a formação social em que vivemos: o capital corrompe a democracia, porque a força do interesse privado das grandes corporações tende sempre a prevalecer sobre o bem público. Não se trata de exclusividade nossa. Muito pelo contrário. Há, a meu ver, e já pude esboçar algumas linhas nesse sentido, uma incompatibilidade estrutural entre capitalismo e democracia no sentido forte do termo, isto é, como regime social baseado na liberdade e na autonomia do conjunto dos cidadãos. Mas, é evidente que, em um país com as nossas condições, aquele agenciamento torna-se mais dramático.
Não sei até que ponto as delações de Marcelo Odebrecht e demais comparsas (estamos, afinal, falando de uma organização criminosa) são verdadeiras ou representam crimes. Vide, por exemplo, o caso do ex-presidente Lula. Se, por um lado, a intimidade de um líder popular com os principais executivos da empreiteira pode (diria: deve) ser criticada, de outro, forçoso é notar que essa crítica é fundamentalmente moral, e não criminal. Sobretudo porque, na sua quase integralidade, elas dizem respeito a relações de agentes privados, porquanto denunciam “favores” a partir de 2011, momento no qual Lula já não exercia qualquer cargo público. Vide o caso das palestras do ex-presidente, que também foram contratadas por inúmeras outras empresas. Ou mesmo o tal “fundo” com sobras de campanha de 2010, que Lula alega nunca ter usado e que, segundo as próprias delações, foi criado unilateralmente pela empreiteira.
Do mesmo modo, a divulgação, da forma como tem sido feita, mistura propositalmente alhos com bugalhos: doações de campanha com recebimento de dinheiro em troca de contrapartidas; relações moralmente questionáveis travadas a partir de expectativas da Odebrecht com a materialização de atividades ilícitas.
De qualquer forma, o ponto que me chamou mais a atenção nas delações foi a nítida sinalização para algo que deveria ser de domínio público: a relação promíscua entre capital privado e poder público, no Brasil, tem seu princípio ativo no financiamento de campanhas.
Quem acompanha o blog sabe que há anos se bate nessa tecla. São diversos posts, inclusive alguns que remetem a artigos que tive a oportunidade de escrever para a revista Teoria e debate, assinalando essa posição. E não se trata de uma posição particular. Vale lembrar que os partidos de esquerda (PT, PCdoB e PSOL) sempre defenderam o financiamento público de campanhas, justamente porque ele, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, seria bem menos custoso ao país – como, imagino eu, ficou claro agora.
Curiosamente, os setores que hoje demonstram “espanto” e “indignação” com a corrupção, são aqueles que historicamente se opuseram à mudança de modelo. Ou seja, são aqueles que mais trabalharam para que aquela promiscuidade perdurasse. Nisso, é bom frisar, incluem-se a mídia e o judiciário. Nesse sentido, o depoimento de Emílio Odebrecht é claro: todos os setores sabiam do modus operandi da política brasileira. E, mais ainda: que esse modus operandi vem de décadas. Por isso, a “surpresa” que muitos jornalistas tentam demonstrar não passa de desfaçatez. São os mesmos que passaram mais de uma década vendendo a tese de que a corrupção havia ido “institucionalizada” pelo PT. Nesse ponto, ao menos, a Lava Jato teve serventia.
Ademais, aquela relação promíscua ocorre, dentre outros motivos, porque a burguesia brasileira sempre foi parasitária. Talvez mais do que qualquer outra no mundo. O próprio Emílio Odebrecht, com efeito, confessa que, no Brasil, a burguesia jamais se dispôs a enfrentar o livre mercado. Não há riqueza nesse pais que não passe por conluio com o poder público.
Mas, tristemente, a menos que haja uma improvável revolta social generalizada (diria, quase uma revolução), são os representantes diretos daqueles setores que cinicamente tentam demonstrar indignação que, passado o turbilhão, deverão se reacomodar. Talvez, com uma ou outra baixa no caminho, e com o interregno de algum governo aventureiro que, certamente, não tocará nos privilégios criados pela relação espúria que agora vem definitivamente à tona. Com a esquerda, porém, o processo deverá ser bem mais cruel. Sua eventual implosão demorará décadas para ser revertida. Por mais paradoxal que pareça, uma vez que, não apenas a esquerda sempre denunciou aquilo que agora de “descobre”, como porque toda essa operação se tornou possível graças ao fortalecimento da Polícia Federal e de mecanismos de controle que, estes sim, foram devidamente revigorados a partir de 2003.
Vinicius, obrigada pelo texto lúcido e claro. Ele me ajudou a entender, um pouco mais, esta nossa conjuntura política.
ResponderExcluirUm afetuoso abraço, Jaciane.
Fico feliz por ajudar, Jaciane! Abraço!
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