Um dos ideais mais nobres da
modernidade iluminista era a concretização de uma sociedade inteiramente
governada pela Razão, ou seja, formada por indivíduos emancipados, respeitadora
das liberdades e promotora da paz. O projeto da “paz perpétua” kantiana, com
tudo o que o cerca e o precede, talvez marque o ápice dessa confiança
irrestrita no progresso de nossa racionalidade. Infelizmente, como se sabe, essa
promessa não se cumpriu – as guerras mundiais do século XX, os campos de
concentração, a ampliação da pobreza etc. foram alguns dos exemplos flagrantes de
que a História era muito mais “astuta”, e bem menos progressivamente linear, do
que aqueles pensadores poderiam conceber.
Entretanto, a perspectiva de uma
sociedade racionalmente organizada não se perdeu por completo. Pelo contrário,
diria que ainda está por realizar-se. É verdade que, rigorosamente falando, como
lembrava Marx, é impossível uma sociedade racional positivamente organizada –
ou seja, uma sociedade democraticamente controlada pelo conjunto dos indivíduos
que a compõem – nos marcos de um modo de produção regido pela cega lei da
acumulação de capital, com sua racionalidade “instrumental”, como bem definiram
Adorno e Horkheimer. Logo, se há alguma razão no capitalismo, ela é
contraditoriamente incapaz de promover a emancipação humana que o iluminismo
propunha. Contudo, inclusive porque conscientes dessa contradição, não há
porque abandonar por completo aquele ideal civilizatório, naquilo que ele
apresenta de progressista (o próprio comunismo marxiano, diga-se, se inscrevia
nessa perspectiva).
Fiz esse pequeno preâmbulo apenas
para reforçar que, nesse momento, o Brasil tem se encaminhado na contramão do
desejável para o estabelecimento de um novo patamar de civilização. Com efeito,
temos vivido um processo, não de busca pela Razão, mas de fortalecimento do que
poderíamos chamar de “desrazão”. O aumento do ódio e da intolerância, o
bloqueio ao diálogo, a incapacidade de reflexão, e a confusão entre justiça e
vingança prevalecem. A aprovação, nesta quarta-feira, da PEC da redução da
maioridade penal é (mais) um evidente exemplo do irracionalismo proto-fascista que
tomou conta da sociedade brasileira no último período. Não que esta
irracionalidade não existisse antes. Pelo contrário, ele sempre esteve aí, sob
vestes variadas: na conservação de uma desigualdade obscena, nos múltiplos
preconceitos, na violência simbólica... Mas, nos últimos tempos, essa
“desrazão” ganhou ainda mais força e eco. Deixou de ser algo quase exclusivamente
exercido por uma parcela (ainda que a parcela dominante) da sociedade e se
capilarizou por todos os segmentos.
De fato, quando a esmagadora
maioria da população acredita – e acredita mesmo – que a solução para o
problema da violência no Brasil é abarrotar ainda mais um sistema carcerário falido,
que já opera acima de sua capacidade e é incapaz de recuperar quem quer que
seja; quando essa população se nega a considerar argumentos e estatísticas que
provam a ineficácia de uma medida como a da redução da maioridade penal (e os
riscos que ela carrega de modo subjacente); e ainda aplaude a aprovação dessa
medida a partir de um golpe em nossa própria democracia; só podemos concluir
que a razão perdeu. A justiça foi substituída pela vingança. O respeito pelo
ódio. O diálogo pela força. O pensamento pela irreflexão. Ao fim e ao cabo, o
que a maior parte dos deputados fez, nesta quarta-feira, após a violação regimental
(mais uma!) empreendida por Eduardo Cunha*, nada mais foi do que exprimir a
irracionalidade que perigosamente atravessa nossa sociedade e ameaça, como
nunca, nossa claudicante democracia.
PS: como postei nas redes
sociais, após o ocorrido na noite de ontem, sugiro essa nova redação do Artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal: "Todo o poder emana do
Cunha, que o exerce por meio de repre$entante$ eleito$ ou diretamente, nos
termos que bem lhe aprouver”.
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