terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Feliz 2016!

E mais um ano vai chegando ao fim. Ano particularmente difícil para o país e, pessoalmente, com algumas decepções. Até no futebol, o ano do São Paulo foi um desastre! Não obstante, meu 2015 também teve seu lado positivo: mais um ano como professor na Unesp de Franca, mais um ano com a Angelica, um ano passado com saúde e de oportunidade de conhecer um pouco mais do Brasil. No blog, este ano foi o menos produtivo, ao menos em termos quantitativos: as ocupações diárias e a dinâmica inacreditável do noticiário impediram uma atualização mais frequente. Ainda assim, foi mantida uma média razoável de atualizações, e alguns textos, sobretudo de Filosofia, que foram prazerosos de publicar. Ademais, o número de visitantes e de curtidas na página do Filosofia e coisas da vida no Facebook cresceu de modo notório, o que me deixa particularmente honrado.

Enfim, para 2016, espero que todos tenhamos um ano menos atribulado e com importantes realizações – pessoais e coletivas. Como ocorre todo ano, o blog dá uma parada de algumas semanas e, a menos que algo de extraordinário mereça algum registro, voltará a ser atualizado ao final de janeiro.

Muito obrigado a todos os leitores e leitoras deste espaço e um ótimo 2016 para todos nós!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Aspectos da crítica de Hegel à ética kantiana

Como se sabe, a filosofia hegeliana é fortemente influenciada pelo pensamento kantiano. Entretanto, uma série de divergências separam radicalmente ambos os filósofos. Por exemplo, no que diz respeito ao entendimento da ética. Hegel, é verdade, concorda com Kant em relação à objetividade da lei moral. Para ambos, esta se impõe aos agentes independentemente de seus desejos pessoais. Com efeito, o conteúdo da lei está determinado por princípios racionais e pode ser, consequentemente, apreendido pela razão. Entretanto, para além dessas convergências, há, em Hegel, uma forte crítica ao “formalismo” da ética kantiana, crítica essa reveladora não apenas dos eventuais limites dessa última, como também das linhas de força de seu próprio pensamento.

Kant, lembremos, estabelecia como critério da moralidade de uma ação a possibilidade de sua máxima, “o princípio subjetivo do querer”, isto é, a forma do ato, poder ser universalizada sem contradição, servindo como “lei universal”. Assim, diz Kant, em certos casos, temos apenas que imaginar que a máxima tenha aplicação geral para ver que ela implica contradição – por exemplo, o suicídio. Em outros, porém, podemos imaginar a máxima tendo aplicação geral, mas não podemos desejar, consistentemente, que a tenha – como no caso da falsa promessa.

Destarte, uma máxima que não se mostre apta a reger as ações de todos os agentes que se encontram nas mesmas circunstâncias gerais, ou que não se pode desejar, consistentemente, que tenha aplicação geral, é desqualificada por não poder servir como lei moral, ou seja, por não poder ter a universalidade que constitui a característica formal da lei. Sendo assim, a prova da universalidade é essencialmente negativa: quando aplicada com correção, ela mostra o que não se deve fazer, mas se cala a respeito daquilo que, positivamente, poderíamos fazer.

É a partir dessa leitura que Hegel dirige suas críticas elementares ao sistema ético kantiano. No §135 da Filosofia do Direito, o filósofo assinala que a perspectiva de Kant bloqueia “qualquer doutrina imanente de deveres”, e acrescenta: “Fixar-se na posição puramente moral (como faria Kant), sem fazer a transição para a concepção da vida ética, é reduzir esse ganho (a ênfase kantiana na infinita autonomia da vontade) a um formalismo vazio, e a ciência da moral à pregação do dever pelo dever... Se a definição do dever fica sendo a ausência de contradição, a correspondência formal consigo mesmo (o que não é senão a indeterminidade abstrata estabilizada), não é possível qualquer transição para a especificação de deveres particulares. Tampouco, se um conteúdo particular para a ação entrar em consideração, não há qualquer critério naquele princípio para decidir se se trata ou não de um dever”.

Cumpre esclarecer que a “vida ética”, ou eticidade, ou moralidade objetiva (Sittlichkeit), representa o momento conclusivo do percurso dialético do espírito objetivo que tem como início o direito abstrato e adquire consciência na interioridade subjetiva do ponto de vista moral (Moralität). De fato, a moralidade subjetiva é encarada por Hegel como uma mediação, um momento de passagem para o domínio da externalização objetiva da consciência moral na forma de instituições sociais, leis, governos etc.. Em outros termos, a moralidade, segundo o uso que Hegel faz do termo, é um conceito unilateral, no qual o Espírito não poderia se deter em seu processo de auto-reconhecimento. Por isso, é preciso mostrar que o conceito puramente formal da moralidade é inadequado, bem como tratar a moral formalista kantiana como fixação nesse momento – unilateral – do desenvolvimento dialético da consciência plenamente realizada, isto é, na Moralität.

Mas, a crítica hegeliana não se resume a este primeiro aspecto. Na verdade, segundo o filósofo de Jena, a prova kantiana não seria eficaz nem mesmo quando considerada como puramente negativa. De acordo com Hegel, por si mesma, ela nada pode descartar nada, servindo, ato contínuo, como justificativa para qualquer conduta. “A ausência de propriedade contém em si tão pouca contradição quanto a não existência dessa ou daquela nação, família, etc., ou a morte de toda a raça humana. Mas já foi estabelecido, em outras bases, que a propriedade e a vida humana devem existir e ser respeitadas, pois é de fato uma contradição cometer roubo ou assassinato. Uma contradição deve ser contradição de uma coisa, e de algum conteúdo pressuposto desde o começo como um princípio firme. É apenas a um princípio desse tipo, portanto, que uma ação pode ser relacionada em termos de correspondência ou de contradição”.

Tomemos um exemplo do próprio Kant, presente na Crítica da razão prática, mas cujo espírito se fazia presente já na Fundamentação da metafísica dos costumes: “A máxima ‘quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá’ não poderia nunca valer como lei universal da natureza e concordar consigo mesma. Pelo contrário, ela se contradiria necessariamente. Pois a universalidade de uma lei que permitisse, a cada homem, que se julgasse em apuros, prometer o que lhe viesse à ideia com intenção de o não cumprir, tornaria impossível a própria promessa e a finalidade que com ela pudesse ter em vista; ninguém acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como de vãos enganos”;

Kant tem razão ao dizer que, nessas circunstâncias, toda a instituição de fazer e aceitar promessas desapareceria. Contudo, alertados por Hegel, seria legítimo perguntar: “e daí?”. Afinal, disso não parece seguir-se necessariamente que um mundo sem promessas seja forçosamente um mundo moralmente degradado. Na verdade, seguindo o raciocínio hegeliano, Kant demonstraria apenas o fato de não se poder aceitar a instituição de cumprir promessas e rejeitar, ao mesmo tempo, algo que ela necessariamente implica, a saber, que uma pessoa que fez uma promessa tente realmente cumpri-la.

Hegel, nesse sentido, identifica a existência de um pressuposto na argumentação kantiana: o fato de que seria correto cumprir as promessas, ou mesmo que devem existir promessas. Ora, essa conclusão deveria, a confiar no espírito da filosofia de Kant, ser justificada pela prova da universalidade – o que ela não é. Assim, completa Hegel: “A proposição: ‘age como se a máxima de tua ação pudesse ser fixada como um princípio universal’ seria admirável se já tivéssemos princípios de conduta determinados. Dado o conteúdo, então certamente a aplicação do princípio seria um assunto simples. No caso de Kant, entretanto, o próprio princípio não está disponível, e seu critério de não contradição não produz coisa alguma, pois onde nada há, tampouco pode haver contradição”;

Dessa forma, a prova da universalidade, ou da ausência de contradições, teria valor apenas nas circunstâncias em que o agente moral já estivesse comprometido com um princípio moral. Mas, como fixar este princípio prévio – enquanto conceito racional universal – na interioridade absoluta da moralidade subjetiva? Impossível. Logo, o que Hegel sinaliza é que não se pode dar um conteúdo definido à moralidade no nível da pura interioridade. Para fazê-lo, seria preciso superá-la (como aufhebung dialética) em direção à ideia da sociedade organizada (cf. §137), isto é, à “vida ética”, Sittlichkeit, a etapa dialeticamente superior do Espírito objetivo.

Essa discussão, naturalmente, está longe de esgotar o diálogo crítico entre ambos os autores. Há ainda outros elementos que opõem suas concepções – como a relação de afastamento da natureza, pressuposta pela moralidade kantiana e criticada por Hegel na Fenomenologia do espírito – que, em outra oportunidade, poderemos retomar.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Não vai ter golpe!

Diante da aceitação do pedido de impeachment por parte do nefasto e chantagista presidente da Câmara dos Deputados, é preciso tentar esclarecer algumas coisas:

1-) O segundo mandato de Dilma está sendo desastroso? Sim;
2-) Dilma foi eleita com base em um programa e governa com seu oposto? Sim;
3-) Dilma deu uma banana para sua base de apoio, para os movimentos sociais, e para a esquerda em geral, e preferiu governar com/para os de cima? Sim;
4-) As perspectivas econômicas e sociais para os próximos anos, diante da política de corte liberal que patrocina o ajuste fiscal, são ruins? Sim;
5-) Algum desses itens justifica legalmente um processo de impeachment? Não. Simples assim.


Por isso: não vai ter golpe!

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Até quando?













Depois de um longo hiato sem tentar escrever poesia, deixo com vocês um pequeno exercício de libertação da alma. Porque, parafraseando alguém, se a arte não salva a vida, salva o instante.

***

Até quando?

Viajei com a mala
repleta de sonhos
Mas retorno
com um vazio de esperanças

Abstrato
Acordo, ergo a cabeça, olho para o lado:
apenas móveis velhos
fora do lugar...

Até quando será possível
suportar
o acúmulo trágico dos fatos?

Até quando a impotência
que mortifica a alma
poderá se prolongar?

Até quando sentimentos humanos
serão vítimas
das letras frias de um contrato?

Até quando haverá medo
de se perder
e nunca mais se encontrar?

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Ozzy Osbourne - Mr. Crowley

Sexta-feira 13, tempos sombrios, más notícias se acumulando, tragédias, futuro incerto... nada como um clássico do heavy metal para servir de trilha sonora. Deixo para vocês essa apresentação para a TV inglesa de Mr. Crowley, do primeiro disco solo de Ozzy Osbourne, com participação do extraordinário e saudoso Randy Rhoads na guitarra.

"Approaching a time that is drastic, with their back in the wall..." 

Enjoy it!






segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Poema em linha reta












Fernando Pessoa, imprescindível para um momento de incertezas e questionamentos sobre si mesmo...


Poema em linha reta
(por Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

De volta para o futuro

21 de outubro de 2015. Um dia aguardado por muitos amantes do cinema. Em especial, para aqueles que foram crianças ou adolescenters entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Afinal, é nessa data que Marty McFly, herói daquela época, “chega ao futuro”, junto com o Dr. Emmet Brown e seu inesquecível DeLorean convertido em “máquina do tempo”, na segunda parte da trilogia De volta para o futuro. É verdade que, em certos aspectos, o cenário atual é bastante diferente daquele imaginado no filme: não há carros ou skates voadores (os hoverboards), os calçados não se amarram sozinhos, nem as roupas têm função de auto-ajustamento e auto-secagem. E, felizmente, as pessoas não usam duas gravatas ao mesmo tempo! Por outro lado, drones, aparelhos operados por comando de voz, grandes monitores de tela plana, TVs com função multicanais, teleconferências, computadores portáteis (tablets), videogames que funcionam a partir de movimentos físicos, já são coisas corriqueiras. Ademais, a sociedade tecnocrática, a obsessão pela carreira profissional, a vida mais estressante, também são traços registrados no filme e, para nosso azar, bastante familiares aos nossos tempos...

Mas, independentemente dos acertos e erros de previsões – ou, talvez, precisamente pela possibilidade de haver erros e acertos nesse tipo de exercício especulativo – a “tese filosófica” que perpassa a trilogia (sim, ela existe!), e que Dr. Brown enuncia ao final da terceira parte, permanece intacta, e deve sempre ser lembrada: nosso futuro não está escrito; somos nós quem o fazemos, a cada instante, desde nossas mínimas ações – para o bem ou para o mal. O que faremos de nós, então?

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Doriva?

Torço muito para estar errado, mas entendo que a escolha de Doriva para substituir o demissionário Juan Carlos Osorio entrará na lista como mais um dos incontáveis erros da tenebrosa “gestão” (sic) de Carlos Miguel Aidar.

O estilo de futebol mais retranqueiro praticado pelas equipes de Doriva em nada se assemelha àquele ofensivo promovido pelo treinador colombiano. Se a ideia, ao trazer Osorio, era buscar uma novidade (em métodos, em planejamento tático etc.), com Doriva, o SPFC escolhe o “mais do mesmo” que nada acrescenta ao futebol. Ainda assim, podemos chegar no G4 do Brasileirão ou ganhar a Copa do Brasil? Sim, claro. Celso Roth foi campeão da Libertadores pelo Inter chegando ao clube gaúcho em uma fase semifinal em 2010 (eliminando o próprio SPFC àquela altura, aliás). Mas, pensando a médio e longo prazo, o tricolor paulista parece ter escolhido o caminho da regressão dentro de campo. A mesma, aliás, que vemos escancarada fora dele.

Enfim, numa semana em que a administração Aidar naufragou de vez – registre-se: não há alternativa para salvar o clube que não passe pela saída do atual mandatário tricolor – a opção por Doriva não surpreende. Opiniões à parte, porém, só nos resta torcer. Por Doriva e pela saída de Aidar.

PS: desejo toda sorte ao Profe. Juan Carlos Osorio. Quem sabe um dia ele possa voltar, em um ambiente menos hostil, para terminar o que começou.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

John Lennon - Power to the people

Um recado do mestre, para esses dias estranhos na política... porque não há outra solução!

 

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Vitória da democracia

Há anos, neste blog e em outros espaços, venho batendo na tecla de que o avanço da democracia no Brasil depende forçosamente, dentre outros fatores, do bloqueio da influência do poder econômico na política, em particular nas eleições. Hoje, uma importante vitória foi conseguida nesse sentido: o STF ignorou a atuação patética de Gilmar Mendes na sessão de ontem e proibiu, por 8 votos a 3, as doações empresariais para campanhas eleitorais já a partir do próximo ano. É verdade que o Senado, através da confecção de uma PEC, pode ainda reverter essa decisão. Entretanto, não parece haver clima para tal manobra naquela Casa.

Por isso, vale o registro: neste 17 de setembro de 2015, a democracia brasileira começou a dar um enorme salto de qualidade. E, de mais a mais, em meio ao caos dos acontecimentos dos últimos tempos, essa novidade ainda serve de alento de que dias melhores virão.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Adorno, Horkheimer e a razão instrumental

Na abertura da Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer questionam: “por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está em uma nova espécie de barbárie?”. De fato, esperava-se que, com a civilização científica e com o triunfo do pensamento esclarecido (Iluminismo), isto é, o pensamento livre dos mitos e superstições, a humanidade entraria em uma idade de ouro, livrando-se da barbárie própria de nossa vida natural. No entanto, nossa situação mostra que os sonhos do iluminismo eram apenas ilusões: atualmente, o pensamento crítico e emancipado encontra-se em regressão, convertido em pensamento único. Este fracasso pode ser lido como o fracasso do projeto moderno de articular a autonomia da razão e a conquista da felicidade, cujo ideal está na base da noção de ciência que emerge após a Renascença. Quais as suas razões?

Segundo os autores, a causa elementar é a ausência da capacidade de julgar e discutir nos cidadãos que vivem na sociedade tecnológica e bem “administrada”. A busca de conhecimento crítico é abandonada e usa-se a razão exclusivamente para criar instrumentos e meios que garantam a conservação da vida. Com efeito, o ideal de felicidade, inscrito nos primeiros sistemas filosófico-científicos da modernidade (Bacon, Descartes), foi transmutado em uma tentativa desesperada de auto-conservação. A modernidade iluminista criou a sociedade de massa e o pensamento massificado ou o pensamento único, “unidimensional”, como diria Hebert Marcuse. Ou seja, fez surgir uma sociedade na qual todos, para garantirem sua conservação, devem pensar de modo normatizado, de acordo com padrões de uma inteligência tecnológica, econômica e pragmática.

Essa uniformização do pensamento – na verdade, sua submissão aos ditames de uma lógica heterônoma, no limite, a reprodução do capital – encontra suas bases teóricas já naqueles primeiros filósofos modernos. Por exemplo, a unidade da razão em Descartes, que exportava o método da evidência matemática para todos os demais campos do saber, como a moral. Único método, único objeto. Essa unidade, porém – a história assim o demonstrou – prejudicaria a articulação necessária entre teoria e prática, entre ciência e a emancipação humana prometida, ao mesmo tempo em que seria a chave do progresso, ideal tão característico do período.

O progresso da razão esclarecida, de fato, criou dialeticamente sua própria antítese: a realização da autonomia da razão resultou no estabelecimento de um modelo único de racionalidade ao qual se subordina todo o conhecimento, e que se põe como requisito do próprio exercício da razão. O resultado é paradoxal: como explicado no ensaio O conceito do Iluminismo, que abre a Dialética do esclarecimento, a razão iluminista, que surge na modernidade com o intuito de emancipar o ser humano dos constrangimentos naturais, das superstições e dos mitos, recaiu em uma nova forma de mitologia.

O núcleo dessa nova mitologia se expressa na confusão entre racionalidade e dominação, típica da prática científica moderna. O indivíduo dominado pelo pensamento mítico, não esclarecido, deparava-se com impedimentos para celebrar o casamento entre entendimento e verdade. Bacon, na aurora de nossa época, havia nomeado estes empecilhos: credulidade, aversão à dúvida, temeridade no responder, vangloriar-se com o saber e ter conhecimentos parciais. A vitória sobre estes impedimentos residiria no saber, isto é, na capacidade racional humana. Ao utilizá-la, o ser humano vence a superstição, desencanta a natureza e a si mesmo, e transforma seu conhecimento em técnica. “Saber é poder”, dizia Bacon.

Nesse sentido, o esclarecimento é justamente o movimento da razão que pretende racionalizar o mundo, tornando-o manipulável pelo ser humano. No mundo mitológico, quando o sacerdote invocava as forças da natureza em benefício do ser humano, por exemplo, ele nada mais pretendia do que reverter o poder dominante destas forças, para que elas não concorressem na destruição do universo humano.  Já no caso da técnica, a supremacia, o poder e a possibilidade de domínio situam-se do lado do homem. “O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este os conhece na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las”.

Portanto, na época moderna, o progresso do conhecimento é o progresso do domínio – da natureza e dos próprios homens. O Iluminismo, numa palavra, nada mais é do que a passagem do mito à razão esclarecida, à “maioridade”, como diria Kant. Não se trata, porém, de um movimento que não cobra uma pesada contrapartida: “o preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder”. Nesse sentido, posta a identificação entre conhecimento e dominação, a instrumentação para o domínio recobriu a totalidade do que se entende como o próprio exercício da racionalidade. Uma das principais consequências é que, na sociedade esclarecida, o pensar se transforma em instrumento das ciências positivas. Tudo – inclusive o ser humano – se reduz a uma coisa, manipulável externamente. Com isso, porém, aquilo que era dinâmico e criativo perde sua autonomia e autoconsciência. O pensamento é reificado, transformado em coisa, em algo fixo, passivo e automático.

Por isso, Adorno e Horkheimer dizem que o pensamento esclarecido é um pensamento que não se pensa. É o indivíduo e a ciência que não refletem sobre os fins e as consequências de suas ações: “o esclarecimento pôs de lado a exigência clássica de pensar o pensamento porque ela desviaria do imperativo de comandar a práxis”. Mas, o que seria “pensar o pensamento”? Refletir criticamente sobre as condições do pensar em geral e sobre o conteúdo do que se pensa. A sociedade massificada recusa esta exigência e a classifica como delírio. Por exemplo, os produtos culturais da indústria da comunicação de massa não favorecem a reflexão, mas reproduzem o que é necessário à conservação do status quo. Também, o conhecimento científico não pensa as condições socio-históricas e lógicas de sua produção, bem como seus valores e usos. A meta da ciência praticamente se reduz a criar algo “útil”, economicamente viável. Tampouco o trabalhador assalariado pensa nas reais condições da economia mercantil e se dá conta do mecanismo social da alienação.

Em suma, na sociedade bem administrada, o ser humano não se pensa. A razão instrumental é cega, não se enxerga, não reflete. Por isso, converteu-se, de mecanismo promotor da emancipação, em uma nova – e poderosa – forma de barbárie, que só pode ser combatida dialeticamente pelo trabalho paciente do próprio pensamento. Esta é a tarefa que a teoria crítica se põe.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Tempo para trabalhar

Por falta de tempo devido aos compromissos profissionais e pela precipitação de acontecimentos no mundo político, nada havia escrito no blog a respeito de futebol e do São Paulo FC desde a saída de Muricy Ramalho, há quase três meses. Quem me acompanha nas redes sociais, porém, em especial no Twitter, sabe do apreço que tive pela contratação do técnico Juan Carlos Osorio e que nutro por seu trabalho até aqui. Agora, minimamente superada a turbulência das últimas semanas (pelo menos, assim o espero), que certamente se agravaria em caso de eliminação para o Ceará na Copa do Brasil, me parece oportuno externar uma posição mais bem embasada.

Entendo que a vinda de Osorio é o maior acerto – talvez, o único – dessa gestão desastrada, para dizer o mínimo, de Carlos Miguel Aidar. Contudo, me parece desnecessário lembrar a canalhice (para mim, é este o termo apropriado) que fizeram com o trinador colombiano, ao omitirem, no momento em que o procuraram, a situação financeira dramática que vive o clube. Com efeito, o desmanche promovido por Aidar nas últimas semanas compromete sobremaneira o trabalho de Osorio (e mesmo o próprio ânimo do técnico em permanecer no futebol brasileiro). Por conseguinte, prejudica uma avaliação mais precisa sobre ele.

Esse quadro, no entanto, só vem corroborar algo que, mesmo se não houvesse o desmanche, me parece a postura correta que a diretoria deveria seguir: dar tempo para Osorio trabalhar. Quem teve a oportunidade de morar em outro país sabe a demora que pode ocorrer no entendimento e na adaptação aos costumes, ao dia a dia do novo lugar. Para quem, como o colombiano, chega numa posição de comando, e se depara com a situação desconhecida descrita acima, essa dificuldade se agrava.

Por isso, a meu ver, o melhor a fazer, neste momento, é o seguinte: levar 2015 como der (imagino uma classificação de meio de tabela no Brasileiro e uma eliminação nas quartas ou, no mais tardar, nas semifinais da Copa do Brasil) e dar carta branca para Osorio pensar um time para 2016. Estabelecer um projeto de médio prazo, sem pressão para resultados imediatos. Ora, por quê? É verdade que Osorio não é gênio, o “Guardiola sulamericano”, ou algo assim. E, sim, ele vai errar ainda, e muito, em escalações, em acreditar em jogadores que nós, torcedores, sabemos que não têm condições de oferecer nada, em improvisos... Além disso, também terá de aguentar as trapalhadas de Aidar e sua trupe. Entretanto, Osorio é inegavelmente um trabalhador, estudioso, uma mente arejada num futebol (e num clube) que agoniza. Alguém que propõe um futebol para além da retranca e do contra-ataque, que quer fazer o SPFC jogar como o grande clube que é. E, acima de tudo, o treinador colombiano é uma reserva de bom caráter e hombridade num ambiente visivelmente putrefato.

Assim, se há um pilar que pode servir para reestruturar minimamente o há anos cambaleante São Paulo, ao menos dentro de campo, este é justamente Osorio. Mas, trata-se de um trabalho que leva tempo, ainda mais sem dinheiro para grandes contratações. Logo, de nada adianta cobrá-lo apenas pelo próximo jogo. Há de se enxergar alguns passos adiante. E, de mais a mais, nunca é demais lembrar: construir é sempre mais difícil do que destruir.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O alvo

Nos últimos dias, a estratégia de alguns setores da elite brasileira, capitaneados pela grande mídia, começou a ficar mais nítida. Após o (à primeira vista) surpreendente recuo em relação ao eventual impeachment de Dilma, a sanha golpista parece se direcionar a outro incontornável personagem: o ex-presidente Lula.

Primeiro, houve a divulgação de um grampo telefônico, no qual Lula conversa com um empreiteiro preso na Operação Lava Jato. Depois, no final de semana, a publicação ilegal de seu sigilo bancário, mostrando o montante milionário arrecadado (legalmente, é bom frisar) com palestras após o final de seu mandato – parte delas, feitas a pedido de empresas citadas na mesma operação policial. E finalmente, no domingo, durante as manifestações e em suas repercussões, a ênfase dada pelos analistas da grande imprensa à proeminência da figura do ex-presidente nos protestos (simbolizada no boneco inflável de Brasília) demonstrou de modo praticamente inequívoco: Lula é o alvo.

A equação parece simples: de um lado, Dilma continuaria enfraquecida, com baixíssima popularidade, especialmente por conta da economia e, porque não, de sua inabilidade política. Assim, na “corda bamba”, seria obrigada a ceder ainda mais a pautas como aquelas da “Agenda Brasil”, proposta pelas classes dominantes e seus porta-vozes no Congresso e dentro do próprio governo. De outro, se inviabilizaria Lula politicamente através de um indiciamento, ou mesmo, no sonho de muitos, com a prisão do ex-presidente. Se haverá argumentos consistentes e provas, não interessa: o que vale é a narrativa em curso, que visa criar um clima de que Lula é “o chefe” de uma organização criminosa e, portanto, o fim “natural” ao qual a Lava Jato deve chegar. Se essa tese prosperar, ademais, o PT – que anda tão perdido e acuado quanta a presidenta – levaria sua pá de cal e, com ele, toda a esquerda (não se enganem: para esse pessoal, PT, PCdoB, PSOL, PSTU, representam exatamente a mesma coisa).

Para isso, falta “combinar com os russos”, isto é, com o povo que elegeu Dilma e Lula. Na última semana, a “Marcha das Margaridas”, o encontro da presidenta com os movimentos sociais, os atos em frente ao Instituto Lula, demonstram que o enredo – se for este mesmo – não será realizado tão facilmente. Com efeito, mesmo descontentes com o governo, fica claro também que muitos setores estão dispostos a resistir a qualquer forma de golpismo, como esta, mais ou menos camuflada, que agora se tenta emplacar.

sábado, 8 de agosto de 2015

Sobre o atual momento político

Vamos lá: algumas apostas sobre o aparente surto de bom senso da dupla FIESP/FIRJAN (Federação das indústrias de SP e RJ, respectivamente) e das Organizações Globo no final desta semana tumultuada.

A meu ver, FIESP e FIRJAN fazem um cálculo puramente econômico. O país em crise é ruim para seus representados. E, nesta semana, ficou claro que o ajuste fiscal do governo pode fazer água no Congresso, onde há uma rebelião generalizada das “bases”, capitaneada por Eduardo Cunha. A nota, ecoando o que alguns grupos de mídia já vinham anunciando, parece dizer algo do tipo: “Vocês foram longe demais. A crise política não pode mais atrapalhar nossa recuperação econômica”. Cunha, de fato, deve ter sua queda política selada nas próximas semanas.

A Globo vai em linha semelhante. Até porque, verdade seja dita, os governos petistas foram e continuam sendo bastante genero$o$ com as empresas da família Marinho. Ademais, em um momento de baixa de audiência e perda de sua credibilidade, a Globo, provavelmente, não quer ser novamente tachada de golpista (como em 1964 e 1989). Por isso, não pode embarcar (abertamente, pelo menos) na insanidade de novas eleições proposta pelo PSDB de Aécio. Apoiariam uma destituição da presidência apenas em um caso extremo, visando, assim, passar para o grande público a (falsa) ideia de imparcialidade.

Como cereja no bolo, os dois grupos ainda tomam as rédeas do governo. É aquela velha lógica chantagista: “Nós lhes demos apoio na hora mais difícil. No momento oportuno, esperamos nossa retribuição”. Ou seja, em troca de apoiar a legalidade democrática, garantem que nada vindo de Brasília vai atrapalhar seus negócios. Ao mesmo tempo, tornam o governo refém de sua agenda pelos próximos três anos.


E, nesta quadra, um último dado relevante. O presidente da República, de fato (ou seja, reconhecido por estes setores), passa a ser Michel Temer. É parte fundamental da “troca” que se desenhou. Se ela vai vingar? Não sei. Mas, ao que tudo indica, é o que se pretende.

domingo, 26 de julho de 2015

Rousseau, o contrato social e a democracia no Brasil

Embora seja um dos mais célebres expoentes do Iluminismo, o genebrino Jean-Jacques Rousseau não compartilhava uma das características mais marcantes de seus contemporâneos das Luzes: o otimismo no progresso moral dos seres humanos. Pelo contrário, partindo da hipótese de que a sociabilidade teria eliminado a pureza de sentimentos do homem natural, Rousseau lê a história da humanidade como uma história de queda.

Com efeito, no Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens, Rousseau delineia seu pensamento a partir um hipotético estado de natureza, marcado pela paz e pela tranquilidade. Neste momento, o homem primitivo era feliz porque vivia de acordo com as suas necessidades inatas, em estado de liberdade e igualdade em relação a todos os outros. Era o “bom selvagem”.

Nesse sentido, de acordo com Rousseau, o ser humano é naturalmente um ser solitário, dotado de um instinto de auto-preservação, de um sentimento de compaixão por seus semelhantes, e potencialmente racional. Ademais, possui outras duas características que o distingue dos outros animais: a já mencionada liberdade – poder fazer tudo aquilo que suas forças permitirem –; e a perfectibilidade – isto é, a capacidade de aperfeiçoar-se, de superar seus próprios limites. Ora, é justamente esta capacidade natural que o conduz para além do estado originário.

Por conta desta tendência ao aperfeiçoamento, os indivíduos começam a se associar com o intuito de melhor dominar a natureza e, com isso, se estabelecem os primeiros agrupamentos. Com eles, surgem a inveja, a discórdia e a desconfiança. Ao mesmo tempo em que aprofundam o desenvolvimento das técnicas, criando atividades tais como a agricultura e a metalurgia, os seres humanos veem sua bondade natural ser corrompida. Sem leis e sem juízes reconhecidos, ou seja, guiados apenas por sua própria consciência, não há entendimento possível entre os homens e a situação torna-se caótica. A vida social é, então, marcada por uma verdadeira guerra de todos contra todos.

O ponto de inflexão desse processo histórico, porém, é o surgimento da propriedade privada. Com efeito, em Rousseau, a sociedade é o reino da desigualdade instituído pela propriedade privada. A partir daí, os seres humanos precisariam estabelecer leis para se protegerem: uns para preservarem suas propriedades e outros para se resguardarem das arbitrariedades dos mais poderosos. Ao menos, é o que estes últimos pretendiam. Na verdade, diz Rousseau, eles foram ludibriados pelos primeiros. Com o surgimento da sociedade civil, o que ocorre, de fato, é a perpetuação da divisão social entre ricos e pobres, através de um pacto ilegítimo.

À luz deste cenário, se ilumina a proposta da grande obra rousseauniana, o Contrato social. Ali, trata-se de entender como os homens, que nascem livres e iguais, tornaram-se escravos de alguns poucos poderosos. E para compreendê-lo, o filósofo propõe uma nova forma de sociabilidade entre os indivíduos, um novo “contrato”. Este pacto daria luz a um estado civil capaz de superar (ou minimizar) a desigualdade social consolidada pelo aparecimento da propriedade privada.

Assim, a meta do Contrato social é estabelecer uma livre associação de seres humanos inteli­gentes e capazes que se decidem por formar outro tipo de socieda­de, não mais baseada na guerra de todos contra todos, mas sim, na vontade geral e na soberania do povo. Desse modo, os homens permaneceriam, por força de sua vontade, livres e iguais.

Com efeito, a ideia de Rousseau é propor uma forma de poder legítimo, que não pressupõe uma volta ao estado de natureza para rever­ter o quadro de desigualdade instalado. A associação civil deve ser estabelecida de tal modo que o interesse de cada indivíduo seja levado em conta, o que só é possível em um modelo de formação social e política legítimo, isto é, no qual a liberdade e a igualdade estejam virtuosamente articuladas. Desse modo, com o novo contrato, a liberdade natural, que só conhecia limites nas forças do próprio indivíduo, é abandonada em favor da liberdade civil, cujo limite é estabelecido pela vontade geral. A vontade geral, com efeito, é aquela que dá voz aos interesses que cada pessoa tem em comum com todas as outras. Não se trata, convém notar, da mera soma das vontades particulares, mas de um substrato comum a todas as vontades individuais.

Por consequência, a liberdade garantida pelo contrato é uma liberdade mais plena, racional, que se distribui igualmente pelo corpo político, e que só se efetiva no âmbito social. Neste estágio, o povo é, ao mesmo tempo, quem formula e quem está submetido às leis. Numa palavra, a liberdade é a autonomia, o poder e o direito de criar as leis que deverá obedecer. A partir do momento que o homem aceita a autoridade da vontade geral ele passa a pertencer a um corpo coletivo, ou seja, a uma sociedade, seguindo os desígnios de sua razão e cons­ciência, adquirindo liberdade de pensar e de respeitar as leis que ele mesmo prescreveu para si e para toda a comunidade da qual faz parte.

Com isso, Rousseau fundamenta as bases de um estado democrático. Não ao modo da antiga democracia grega, o que seria impossível nas condições atuais, no qual a alienação dos direitos naturais acontece em favor da sociedade inteira entendida como um corpo político unitário – unidade essa que se materializa na vontade geral.

Enfim, no estado civil rousseauniano, o povo tem o poder sobera­no, e o corpo administrativo do estado (inclusive o governante) é funcionário deste sobe­rano, o qual está submetido e limitado pelo poder do povo. Em outras palavras, o governante é apenas um representante da soberania popular (mesmo em uma monarquia, por exemplo).

As ideias de Rousseau tiveram grande impacto nas concepções políticas do Ocidente. Por exemplo, o Artigo 1º da Constituição Brasileira, em seu parágrafo único, diz expressamente, ecoando o ideal de Rousseau: “Todo poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Contudo, sabemos que as coisas não se passam bem assim – como a tirinha da Mafalda acima ilustra. De fato, embora vivamos em um regime que, em aspectos essenciais, é inegavelmente democrático, não é despropositado observar que a democracia brasileira ainda parece distante de encerrar a virtuosa articulação entre liberdade e igualdade estabelecida por Rousseau como pilar de uma associação legítima. Nesse sentido, se aceitamos a tese forte do filósofo genebrino (a soberania popular como única fonte de legitimidade do estado civil), podemos pensar em duas grandes causas para este distanciamento entre teoria e realidade.


Em primeiro lugar a crescente – e crescentemente nefasta – interferência do poder econômico sobre os interesses públicos. Tal interferência atualmente se expressa, em especial, na participação empresarial no financiamento das campanhas eleitorais, e constitui, a meu ver, o núcleo dos problemas políticos brasileiros. Afinal, o financiamento privado “amarra” os eleitos às empresas financiadoras, fazendo com que as demandas coletivas sejam frequentemente sufocadas pelos interesses particulares daqueles setores. Por conseguinte, a soberania popular é anulada em detrimento do poder do capital, distorcendo, no mesmo gesto, a ideia de representatividade, tão cara a qualquer democracia.

A percepção dessa situação – expressa em frases comumente ouvidas, tais como, “os políticos só governam para os ricos”, “ninguém se interessa pelo povo” etc. – conduz à segunda grande causa daquele distanciamento indicado no parágrafo anterior: a alienação de grande parte da população em relação aos rumos do país. Não que esta alienação seja fruto exclusivo da primeira causa. Mas, a ingerência do poder econômico não apenas distorce a representatividade e a busca pelos interesses em comum, como também exclui a parcela majoritária da população da dinâmica de funcionamento da política. A soma destes fatores conduz a um descrédito inevitável. Com isso, porém, amplia-se o desinteresse popular pela política (logo, por sua própria liberdade) e, consequentemente, em um círculo vicioso, o poder dos mais privilegiados (que jamais deixam de ocupar da política, convém sempre lembrar) é ainda mais reforçado, aumentando ou perpetuando a desigualdade social.

Enfim, se a essência da democracia, tal como observou Rousseau, é a soberania popular, não é errado dizer que estamos longe ainda de constituir uma democracia efetiva no Brasil. Isto é, uma sociedade na qual todos sejam verdadeiramente iguais e livres, artífices da vida em comum. Embora passos importantes tenham sido dados nesse sentido nos últimos tempos, o caminho a trilhar ainda é longo – e, pelos últimos acontecimentos de nossa vida política, mais tortuoso do que se poderia supor.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Cazuza - Ideologia

Dia mundial do rock, 25 anos sem Cazuza, e a terrível reviravolta (traição?) na Grécia após o referendo do último dia 5 - reviravolta que culminou na triste vitória da ortodoxia neoliberal de Angela Merkel em sua queda de braço com Alexis Tsipras. Tudo junto e misturado nesse clássico do rock brasuca.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

O que a Grécia precisa nos ensinar

Não é surpresa para ninguém que a sanha golpista, que parecia ter arrefecido nos últimos meses, voltou com tudo após a iminência da rejeição das contas de campanha da presidenta Dilma por parte do TCU (Tribunal de Contas da União), bem como das novas denúncias, em particular aquelas de Ricardo Pessoa, da UTC, na operação Lava-Jato. Por exemplo, o congresso do PSDB realizado neste último domingo, que reconduziu Aécio Neves à presidência do partido, deixou claro o que planeja a oposição para o segundo semestre: abreviar o quanto antes o mandato de Dilma e, a partir daí, ou compor um novo governo encabeçado por Michel Temer, ou convocar novas eleições. E, é evidente que essa movimentação só é possível por conta da inédita fraqueza política do atual governo (no Congresso e fora dele), cujos índices de aprovação despencam a cada nova pesquisa.

Não vou entrar no mérito aqui do bombardeio midiático que, há tempos, criou um cenário propício para essa perda de popularidade de uma presidenta reeleita há menos de um ano. Isso, agora, tem menor importância. O que interessa, neste momento, é o fato concreto: de um lado, um governo fragilizado, desacreditado, alvo permanente de denúncias de corrupção, e que enfrenta, ainda por cima, um desgaste natural devido ao mau momento da economia; de outro, uma oposição que, atuando em mais de uma trincheira (PSDB, Eduardo Cunha, mídia) vê-se apta a conseguir aquilo que as urnas lhe rejeitaram inapelavelmente por quatro vezes nos últimos doze anos: retomar sem intermediários o pleno controle do país.

Neste cenário, o que resta a Dilma, ao governo e ao PT? É aqui que o exemplo grego pode ser bastante útil.  Em janeiro, quando o Syriza, partido de esquerda liderado por Alexis Tsipras, venceu as eleições, escrevi aqui que aquele triunfo representava um “sopro de esperança” não apenas para os gregos ou para os europeus, mas, inclusive, para além das fronteiras do velho continente. Ontem, de fato, os gregos mostraram haver outro caminho possível para além do consenso neoliberal. Mas, importa destacar, a histórica vitória do “não” no referendo deste domingo, que representou uma reação popular inédita aos ditames do mercado financeiro internacional, só foi possível pela coragem do governo de Tsipras, que, conforme prometido em sua campanha eleitoral, não se curvou às chantagens do capital especulativo, apoiando-se democraticamente na força do seu povo.

É essa coragem que deve servir de exemplo a Dilma, a seu governo e a seu partido neste momento. Se há uma possibilidade de a sanha golpista da oposição não prosperar, ela passa justamente pelo uso da força da base social que reelegeu a presidenta petista. Dito de modo claro: só se pode evitar o golpe que está sendo desenhado nas ruas, e não nas negociações de cúpula (que se dão com os maiores interessados em que o golpe seja exitoso).

Contudo, aquela base que poderia sair às ruas para defender o mandato da presidenta encontra-se dispersa e desanimada, não apenas porque acuada diante do cerco midiático, mas, sobretudo, porque não encontra apoio nas ações do governo para realizar um contraponto a este cerco. Com efeito, fica difícil pedir aos trabalhadores organizados que saiam às ruas para defender um governo que, em nome da austeridade (contra a qual combateu corretamente durante a campanha) editou duas MPs que – sem tergiversações – representam ataques desnecessários a direitos trabalhistas consagrados. Ou pedir empenho para os sem-terra, depois de colocar a inimiga número 1 do MST, Kátia Abreu, no Ministério da Agricultura (e com direito a efusivos elogios). Na mesma linha, há de se questionar como cobrar dos reitores e estudantes das instituições federais de ensino o mesmo apoio dispensado nas eleições de 2014, quando essas instituições sofrem dia a dia com a falta de recursos oriunda da política de corte de gastos do ministro da Fazenda? Ou querer que os estudantes de baixa renda defendam um governo que, na mesma linha, contingencia verbas destinadas ao crédito estudantil?

Ora, antes que me acusem de “anti-petismo”, de “fazer o jogo da direita”, ou algo do gênero, me parece desnecessário lembrar que entendo haver muitos pontos positivos nos governos petistas, inclusive no que diz respeito aos direitos trabalhistas, à reforma agrária e à educação. Meus textos aí estão para mostrar o que penso a respeito. E é claro que, independente de qualquer avaliação sobre o atual governo, é preciso, acima de tudo, preservar nossa já cambaleante democracia – hoje ameaçada pela onda de proto-fascismo que atravessa nossa sociedade, como escrevi em posts anteriores.

Contudo, me parece claro que apenas se prender ao passado, ou à legalidade, infelizmente pode não bastar. Dilma, o governo e o PT precisam urgentemente reaglutinar sua base para evitar o desfecho golpista. Mas, para isso, é indispensável reanimar essa mesma base, oferecer alternativas reais (e não só retóricas) ao pessimismo que a cerca. Nesse sentido, só há um caminho: reorientar para ontem a política econômica vigente. Do contrário, temo que assistiremos passivamente (ou quase) a derrocada do governo petista (e, por consequência, do próprio partido e da esquerda em geral). Por isso, que me perdoem o clichê, mas, neste momento, há de se mirar no exemplo das mulheres e dos homens de Atenas, e enfrentar sem medo os interesses que devem ser enfrentados.

Honestamente, no entanto, não sei se ainda há tempo para essa reaglutinação, mesmo com uma virada na política econômica, dado o momento delicadíssimo que atravessamos. Mas, é preciso tentar. Até porque, a história costuma ser implacável com aqueles que desistem antes mesmo de lutar.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Redução da maioridade penal: vitória da "desrazão"

Um dos ideais mais nobres da modernidade iluminista era a concretização de uma sociedade inteiramente governada pela Razão, ou seja, formada por indivíduos emancipados, respeitadora das liberdades e promotora da paz. O projeto da “paz perpétua” kantiana, com tudo o que o cerca e o precede, talvez marque o ápice dessa confiança irrestrita no progresso de nossa racionalidade. Infelizmente, como se sabe, essa promessa não se cumpriu – as guerras mundiais do século XX, os campos de concentração, a ampliação da pobreza etc. foram alguns dos exemplos flagrantes de que a História era muito mais “astuta”, e bem menos progressivamente linear, do que aqueles pensadores poderiam conceber.

Entretanto, a perspectiva de uma sociedade racionalmente organizada não se perdeu por completo. Pelo contrário, diria que ainda está por realizar-se. É verdade que, rigorosamente falando, como lembrava Marx, é impossível uma sociedade racional positivamente organizada – ou seja, uma sociedade democraticamente controlada pelo conjunto dos indivíduos que a compõem – nos marcos de um modo de produção regido pela cega lei da acumulação de capital, com sua racionalidade “instrumental”, como bem definiram Adorno e Horkheimer. Logo, se há alguma razão no capitalismo, ela é contraditoriamente incapaz de promover a emancipação humana que o iluminismo propunha. Contudo, inclusive porque conscientes dessa contradição, não há porque abandonar por completo aquele ideal civilizatório, naquilo que ele apresenta de progressista (o próprio comunismo marxiano, diga-se, se inscrevia nessa perspectiva).

Fiz esse pequeno preâmbulo apenas para reforçar que, nesse momento, o Brasil tem se encaminhado na contramão do desejável para o estabelecimento de um novo patamar de civilização. Com efeito, temos vivido um processo, não de busca pela Razão, mas de fortalecimento do que poderíamos chamar de “desrazão”. O aumento do ódio e da intolerância, o bloqueio ao diálogo, a incapacidade de reflexão, e a confusão entre justiça e vingança prevalecem. A aprovação, nesta quarta-feira, da PEC da redução da maioridade penal é (mais) um evidente exemplo do irracionalismo proto-fascista que tomou conta da sociedade brasileira no último período. Não que esta irracionalidade não existisse antes. Pelo contrário, ele sempre esteve aí, sob vestes variadas: na conservação de uma desigualdade obscena, nos múltiplos preconceitos, na violência simbólica... Mas, nos últimos tempos, essa “desrazão” ganhou ainda mais força e eco. Deixou de ser algo quase exclusivamente exercido por uma parcela (ainda que a parcela dominante) da sociedade e se capilarizou por todos os segmentos.

De fato, quando a esmagadora maioria da população acredita – e acredita mesmo – que a solução para o problema da violência no Brasil é abarrotar ainda mais um sistema carcerário falido, que já opera acima de sua capacidade e é incapaz de recuperar quem quer que seja; quando essa população se nega a considerar argumentos e estatísticas que provam a ineficácia de uma medida como a da redução da maioridade penal (e os riscos que ela carrega de modo subjacente); e ainda aplaude a aprovação dessa medida a partir de um golpe em nossa própria democracia; só podemos concluir que a razão perdeu. A justiça foi substituída pela vingança. O respeito pelo ódio. O diálogo pela força. O pensamento pela irreflexão. Ao fim e ao cabo, o que a maior parte dos deputados fez, nesta quarta-feira, após a violação regimental (mais uma!) empreendida por Eduardo Cunha*, nada mais foi do que exprimir a irracionalidade que perigosamente atravessa nossa sociedade e ameaça, como nunca, nossa claudicante democracia.

PS: como postei nas redes sociais, após o ocorrido na noite de ontem, sugiro essa nova redação do Artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal: "Todo o poder emana do Cunha, que o exerce por meio de repre$entante$ eleito$ ou diretamente, nos termos que bem lhe aprouver”.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Bob Dylan - Mr. tambourine man

Imaginem o privilégio dessas pessoas: acompanhar uma performance intimista de Bob Dylan, no auge de sua criatividade, e ver a história da música se desenhando diante de seus próprios olhos (e ouvidos). É pra dar inveja em qualquer um!

Com vocês, Mr. tambourine man, ao vivo, em 1964. Clássico absoluto de uma das lendas do rock.

 

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Sobre o público e o privado

Um dos traços característicos do pensamento político moderno é a cisão, operada desde Maquiavel, entre os domínios da ética e da política, com a consequente demarcação de dinâmicas distintas a reger estes planos. A partir desta separação, possibilitada e reforçada pela consolidação daquilo que o pensamento filosófico definiria como subjetividade, estabeleceu-se também uma separação análoga entre a lógica da vida pública e a da vida privada.

Em Kant, por exemplo, esta separação se expressa na diferenciação entre a lei moral e a jurídica – ambas frutos da “autonomia da vontade”, isto é, da própria razão humana. Se é assim, convém notar, não há contradição entre ser livre e respeitar a lei, posto que, tanto a lei jurídica, quanto a lei moral são, como dito no início, decorrentes de nossa própria capacidade racional. Porque toda lei impõe deveres, a questão aventada por Kant é saber se seu cumprimento depende ou não de uma coação externa: quando depende, temos uma lei jurídica (direito positivo); quando não, temos uma lei moral.

Não há correspondência necessária (exceto num cenário ideal) entre uma e outra lei. Segundo o filósofo, o controle imperfeito da razão sobre as paixões impede essa assimilação. Mas, a questão que mais nos interessa aqui é outra. Kant assinala que, no que diz respeito aos deveres morais, os seres humanos são responsáveis perante si mesmos, ao passo que, quanto aos deveres jurídicos, são responsáveis perante outrem. Assim, se configuram duas formas distintas de exercício da liberdade. A primeira, a liberdade moral (interna), pautada pela adequação da conduta aos comandos da razão. Este é o domínio concernente à Ética. Uma segunda forma de liberdade é a liberdade jurídica (externa): não ser impedido externamente de exercer seu próprio arbítrio. Este é o domínio do Direito.

Em Kant, importa destacar, o direito não se subordina a nenhum valor material (como a segurança, em Hobbes, ou a igualdade, nas teorias de inspiração marxista). Para Kant, a sociedade se organiza de modo racional quando nela cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, desde que sua ação não interfira negativamente na liberdade dos demais. Como diz o ditado: meu direito termina quando começa o seu. Logo, o Direito realiza, no plano das relações sociais, aquilo que, segundo o filósofo, constitui a essência do ser humano: a liberdade.

A partir desta visão, desenvolve-se a seguinte tese – um dos pontos elementares do pensamento liberal, do qual Kant, como se nota, é um dos principais formuladores: toda legislação deve assentar-se sobre princípios universais e estáveis, e não em preferências subjetivas, que variam de indivíduo para indivíduo e de acordo com a época. Com efeito, ao Estado, “união de uma multidão de seres humanos submetida a leis de direito”, cumpre tão somente promover o bem público.  Este, segundo Kant, nada mais é do que a juridicidade das relações interpessoais, isto é, a garantia de que meu livre arbítrio possa conviver com o livre arbítrio de outrem. Dito de outro modo, o Estado de Direito kantiano tem como dever exclusivo garantir aos indivíduos o direito a exercer externamente sua liberdade sem prejuízo à mesma liberdade de outrem. Tudo o mais, além disso, é de responsabilidade exclusiva dos próprios indivíduos, isto é, diz respeito à sua liberdade interna.

Do que foi visto, decorre o impedimento de que as autoridades públicas legislem sobre a felicidade, o bem-estar, ou os objetivos materiais da vida individual ou social. Por exemplo, adverte Kant, ninguém pode me obrigar a ser feliz segundo seus critérios.

Para além de qualquer crítica – como a óbvia constatação de formalismo do pensamento kantiano, convenientemente adotada pela política liberal, que não vê no Direito, por exemplo, um mecanismo de correção das desigualdades engendradas pelo capital –, o que interessa aqui é apenas realçar a distinção entre o domínio próprio da vida pública (da Política e do Direito como seu correlato necessário) e aquele da vida privada (das inclinações subjetivas, das preferências pessoais). Isso porque assistimos atualmente, no Brasil, tentativas indevidas de embaralhar estes domínios. Com efeito, não têm sido raros os movimentos que buscam impor preferências que dizem respeito exclusivamente ao plano privado – como as crenças religiosas –, tentando transformá-las em diretrizes para a confecção do direito público. Com isso, inviabilizam, por exemplo, o pleno reconhecimento das distintas orientações sexuais ou a legalização do aborto, para citar duas discussões latentes da agenda política contemporânea, a partir de critérios que não se coadunam com a universalidade requerida pela esfera pública. Na prática, para ficarmos nestes dois exemplos: no primeiro, essa universalidade se exprime fundamentalmente na garantia do direito de expressão da homoafetividade (o que hoje, no Brasil, dado o alto número de assassinatos motivados pelo preconceito sexual, passa pela criminalização da homofobia). No segundo, ela se materializa desde o ponto de vista da saúde pública: dado o fato do aborto, compete ao Estado asseverar as condições para que esta prática, para as mulheres que desejarem fazê-la, ocorra do modo mais seguro possível.

Assim, da perspectiva da Política e do Direito liberais (portanto, não estamos falando nada de "esquerda", "comunismo" etc.), o ponto que interessa é que a concretização dessas ações não implica em qualquer prejuízo à liberdade de outrem. Pelo contrário: assegura a liberdade àqueles que não podem exercê-la plenamente. Em outros termos: não se pretende obrigar alguém a se tornar homossexual (como, aliás, se fosse uma questão de escolha...), caso a homofobia se torne crime, tanto quanto nenhuma mulher será obrigada a interromper sua gravidez, se o aborto for legalizado. Tampouco alguma crença religiosa deixará de ser legítima, nem ninguém será forçado a abandonar seus valores, ou a concordar com o que quer que seja. Isso seria interferir naquela liberdade interna, o que não é papel do estado. Na verdade, o problema surge quando, em nome de certos valores e crenças pessoais, alguns indivíduos e grupos, cujo direito deveria ser o mesmo de todos os demais, têm seu livre arbítrio (de expressar seus sentimentos sem medo ou de dispor de seus corpos, por exemplo) negado.

Enfim, a dificuldade de compreender essas questões se concentra precisamente na confusão, propositalmente impetrada por certos grupos que, para ampliar sua zona de influência, se recusam a afiançar essa conquista da modernidade: a inviolabilidade do domínio subjetivo caminha de mãos dadas com a necessidade de bloquear qualquer tentativa de sequestro do domínio público por preferências, crenças, opiniões e inclinações que são – e devem continuar sendo – exclusivamente pessoais.


quinta-feira, 28 de maio de 2015

Democracia em frangalhos

Assistimos, nessa semana, um dos mais duros – se não o mais duro – golpe em nossa democracia, pelo menos desde a promulgação da atual Constituição, em 1988. A$ manobra$ do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, primeiro, para votar a reforma política ao arrepio das discussões precedentes sobre o tema; e, depois, para incluir o financiamento empresarial de campanhas, menos de 24 horas depois de ver a mesma proposta ser rejeitada pelo plenário, foram um acinte à vontade popular. Além disso, tornaram (ainda mais) explícitas a corruptibilidade de grande parte de nossos deputados e, de quebra, passaram um recado inequívoco de quem manda na agenda do país. Nossa política tem um dono.

Há de se notar, porém, que tais manobras golpistas talvez pudessem ter sido evitadas, por exemplo, se o governo tivesse tido o mesmo empenho em relação à reforma que teve em relação ao nefasto ajuste fiscal. Mas, olimpicamente, diferente do que fez em relação às MPs 664 e 665, o Executivo optou por não tomar parte nas discussões daquilo que é a essência dos problemas da vida política brasileira: a interferência indevida do poder econômico sobre ela. Terminará, mais cedo ou mais tarde, pagando o preço por essa renúncia – tanto quanto todos nós.

A meu ver, depois do que ocorreu nesta quarta-feira, fica evidente que a democracia brasileira está em frangalhos. No mesmo dia em que nos animamos ao ver o mega esquema de corrupção na FIFA começar a ser desbaratado, com prisões de figurões, o Brasil, pela$ mão$ de Cunha e seus asseclas, optou por inscrevê-la como meio legítimo – talvez, o único – de se fazer política no país. Com isso, o presidente da Câmara (que está no cargo há três meses, embora o pareça estar há três anos) demonstrou mais uma vez que vai fazer o que for nece$$ário para impor sua pauta negativa. Nessa hora, os batedores de panela se calam – por conveniência ou por ignorância. Movimentos sociais e partidos de esquerda se encontram na defensiva e, aparentemente, têm pouca força para promover uma mobilização popular capaz de reverter o desastre (evitar que o Senado ratifique a posição dos deputados, por exemplo). Até porque, não encontram ponto de apoio no Executivo que elegeram, pois este, optando por um caminho suicida, tanto na política, quanto na economia, não dá sinais de que possa (ou mesmo queira) se contrapor ao poder do presidente da Câmara. Prefere concentrar suas energias em "acalmar os mercados". O cenário para os próximos tempos não poderia ser pior.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Vida sem pensamento: Hannah Arendt, Darcy Ribeiro e a crise na educação brasileira

"Uma vida sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar sua própria essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos”.

A frase destacada é da filósofa alemã Hannah Arendt. Arendt foi uma crítica ácida da modernidade, na medida em que, segundo seu entendimento, a era atual teria eliminado paulatinamente nossa disposição a pensar, substituindo-a pela necessidade de produzir, fabricar, trabalhar. Contudo, dizia a filósofa, pensar é aquilo que expressa nossa intimidade, nossa individualidade, nossa subjetividade. Logo, indivíduos que não pensam deixam de ser indivíduos e se tornam uma “massa”, amorfa, sem rosto e sem expressão própria. Ainda segundo Arendt – e esta era uma de suas preocupações centrais –, é este fenômeno, a criação das chamadas “sociedades de massa”, típicas da modernidade, que criaria o solo fértil para a emergência dos fenômenos de totalitarismo (nazismo, fascismo, stalinismo) que marcaram a política no século XX.

Ora, aceitando a tese arendtiana assinalada no início, pode-se dizer que temos hoje uma série cada vez mais extensa de “sonâmbulos”. Uma rápida olhada nas redes sociais, por exemplo, revela como, cada vez mais, as pessoas têm uma incrível dificuldade de pensar. Não pensar nesta ou naquela direção específica, mas apenas pensar: refletir, conjecturar, ponderar... Mesmo em assuntos supostamente politizados ou de maior profundidade – na verdade, ainda mais nestes – esse traço dramático se faz notar de modo mais nítido: não há exame consciente, reflexão, contestação, nada. Há apenas reprodução acrítica de “fatos” e ideias que, na maior parte das vezes, são inverídicos (os primeiros) ou completamente descoladas da realidade (as últimas) –isso para dizer o mínimo. E ainda, bem entendido, não se trata de defender que a internet ou as redes criaram este fenômeno. Elas apenas lhe deram uma vazão inédita.

Diante deste quadro, se solução há para este problema, ela naturalmente passaria pela formação de indivíduos críticos, autônomos, isto é, sujeitos dispostos a pensar por si mesmos. E, claro, para que isso pudesse ser concretizado, a escola e a universidade (mas não só elas, é verdade) deveriam desempenhar um papel elementar.  Se é assim, no entanto, é forçoso notar que o cenário atual brasileiro e, consequentemente, as perspectivas para um futuro próximo, não são nada animadoras. Afinal, temos assistido ataques crescentes e de diferentes ordens à educação pública e ao bom funcionamento das instituições de ensino no país. Seja por parte de governos estaduais, que agridem, de diversos modos, professores que reivindicam legitimamente melhores condições de trabalho; seja através destes mesmos governos, infelizmente com ressonâncias cada vez maiores no plano federal (não dá para negar que o slogan “pátria educadora”, até aqui, é mais uma peça de marketing do que qualquer outra coisa, dada a política de austeridade adota por Dilma neste segundo mandato), cortando gastos que afetam a qualidade do ensino público superior e de seus indispensáveis complementos: a pesquisa e a extensão. 

Nesse sentido, vale lembrar o que disse certa vez um dos maiores pensadores sobre a educação no Brasil, Darcy Ribeiro: a crise de nossa educação não é crise, mas um projeto. Uma estratégia de nossas elites para manter a alienação da grande maioria. Infelizmente, sem esquecer alguns importantes avanços neste quesito ocorridos nos últimos anos (a partir das ações do governo federal, é bom frisar), parece incontestável a correção da tese de Darcy e como aquela estratégia ainda tem funcionado bem. Pior: parece que assim o continuará, ao menos no próximo período, causando danos irreparáveis naqueles que, sem perceber, estão condenados a desperdiçar suas vidas como os “homens-sonâmbulos” de Arendt – andando a esmo, sem pensamento.