Com o advento do capitalismo, sobretudo a partir do surgimento dos chamados “meios de comunicação de massa” (rádio, TV, etc.), a arte, que sempre esteve ligada a ideais de sensibilidade, contemplação e reflexão, tornou-se, como tudo neste sistema, uma simples mercadoria. Para tanto, foi preciso que ela se adequasse às leis, às exigências do mercado, e do modelo de vida que ele nos impõe. Surgiu, então, o que o filósofo alemão Theodor Adorno chamou de indústria cultural - que abordarei aqui, rapidamente, de uma perspectiva particular.
Sob o véu da democratização da cultura, a indústria cultural promoveu, na verdade, um afastamento cada vez maior das pessoas em relação aos ideais artísticos. De trabalhos de expressão, criação e experimentação, a arte tornou-se repetitiva, reprodutiva, um evento para o consumo, destinado a se tornar moda. A arte deixou de ser uma expressão humana, para se tornar entretenimento, lazer.

A indústria cultural, porém, nos quer fazer crer que houve, de fato, uma democratização, que cada um pode escolher livremente os bens culturais que deseja. Ora, a realidade não é bem essa. Na verdade, todas as empresas de comunicação selecionam previamente o que cada grupo social poderá ver, ouvir, ler, etc. Basta darmos uma olhada, por exemplo, na programação dos canais de televisão. Programas de maior e melhor conteúdo, quando existem, ou filmes de maior expressividade artística, por exemplo, são passados em horários nos quais a maioria da população não pode vê-los – em geral, de madrugada. Durante o dia, o foco são os programas femininos, que tratam de ocupações domésticas, e assuntos cotidianos de maneira sensacionalista e/ou superficial (afinal, para a indústria cultural, a mulher que vê esses programas não tem tempo, nem capacidade para pensar em algo mais profundo). No chamado “horário nobre”, há uma pasteurização de conteúdos, telejornais que se limitam a apresentar notícias enviesadas, sem debatê-las, novelas e programas de auditório para “relaxar” e nos fazer esquecer dos problemas, após um longo dia de serviço.
E não é só. Selecionando o cada um pode ter acesso, a indústria cultural inventa o que a filósofa Marilena Chauí chamou de “espectador médio” (que pode ser o “ouvinte médio”, o “leitor médio”, etc.). Esses são dotados de uma “capacidade média”, têm certos “conhecimentos médios”, “gostos médios” e, por isso, são agraciados com produtos culturais “médios” (músicas, filmes, programas de TV, livros, etc.). Criam a cultura de massa para uma massa “média”. Tiram da expressão artística seu poder de despertar a sensibilidade, de nos fazer imaginar, refletir, conhecer, etc. Isso fica para uma pequena camada de privilegiados. A nós, resta a arte banalizada, insensível, sem vida, a arte que não nos desperta nenhum sentimento, que não choca, que não nos faz pensar (isso, aliás, tem implicações políticas importantíssimas, as quais, em outra oportunidade, pretendo discutir um pouco); uma arte que se resume a nos apresentar apenas o que já sabemos, o que já conhecemos, isto é, que não passe de lazer e entretenimento, que seja consumida rapidamente – se há a comida fast-food, há também a arte fast-art.

Além disso, há também um processo de infantilização. A criança, em geral, quer seu desejo atendido prontamente, sem contestações. Quando isso não ocorre, ela grita, chora, esbraveja. Em certa medida, é o que a mídia nos oferece. Não suportamos esperar pela satisfação de nossas vontades. Não queremos pensar, refletir, “mastigar” algo que vimos, ouvimos ou lemos. Não queremos ter despertas nossa capacidade de raciocínio, de imaginação, nem mesmo nossa sensibilidade. Queremos tudo pronto, imediatamente. Como crianças. Sem que isso implique um “esforço” adicional. Se não consigo me contentar com esse canal, mudo para o outro, e por aí vai, até que meu desejo seja satisfeito.
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Van Gogh |
Bem diante desse cenário, o que fazer? Trotsky disse que a revolução socialista traria a todos o direito não somente ao pão, mas à poesia. Mas mesmo antes que chegue esse momento, não creio que tudo esteja perdido. Sempre há resistência. Para dar apenas um exemplo, a Internet , se bem utilizada, pode ser uma ferramenta importante de difusão da arte, compreendida enquanto expressão simbólica do homem, de sua cultura, de seu espírito. Quer dizer, sempre é possível, com os meios que dispomos, se contrapor ao status quo (aliás, isso não só na arte). É preciso, inclusive, exigir essa postura de nossos governantes – isto é, exigir que eles auxiliem na difusão artística para além dos ditames mercadológicos. Adotar essa postura não significa, porém, que devamos parar de assistir filmes de Hollywood, de ver TV, ouvir rádio, etc. Sectarismo nunca é saudável. Pelo contrário, do meu ponto de vista, a filosofia nos dá os meios de compreender o significado e a extensão dessa indústria cultural, da qual somos assíduos consumidores. Por conseguinte, ela nos auxilia a despertar para a necessidade de filtrar aquilo que essa indústria nos fornece (afinal, nem tudo pode ser considerado ruim), bem como a irmos atrás daquilo que ela não quer nos oferecer.
Termino, parafraseando Merleau-Ponty, para quem a filosofia “é reaprender a ver o mundo” – esse mundo que criamos, mas que cada vez mais se afasta de nós. Acrescento: é preciso reaprender a sentir o mundo (amar, se emocionar, imaginar, refletir, sonhar). Qual caminho melhor do que a arte? Mas aquilo que hoje se chama arte (isto é, aquela que nós, pobres mortais, temos acesso, o que chamei acima de fast-art), caminha no sentido contrário: ela nos insensibiliza, nos embrutece, nos tira, enfim, um pouco de nossa humanidade.
Para quem se interessar no tema:
ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade, ed. Paz e Terra.
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia, ed. Ática (para esse tema, ver: un. 08, cap. 03). Este livro, aliás, é uma ótima introdução à Filosofia em geral.
Que texto rico ! Queria que nossos cidadoes e amigos pudessem ter tal cosnciencia sobre a arte capitalista que nos é imposta!
ResponderExcluirDeus abençoe!
Muito obrigado Sillas!
ResponderExcluirAbs.