Para se compreender a ética
aristotélica é preciso, em primeiro lugar, observar a distinção operada pelo
filósofo entre saber teorético e saber prático. O saber teorético é o
conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem
nossa intervenção ou interferência. Por exemplo, os fenômenos naturais. O saber
prático é o conhecimento daquilo que só existe como consequência da ação humana.
No âmbito do saber prático, porém, ainda é preciso distinguir entre a prática
como
práxis e a prática como
técnica. Nesta última, diz Aristóteles,
o agente, a ação e a finalidade da ação estão separados. Um exemplo é o
carpinteiro, que ao fazer uma mesa, realiza uma ação técnica, mas ele próprio
não é essa ação, tampouco a mesa produzida por ele. Já na
práxis, o agente, a ação, e a finalidade do agir são inseparáveis.
E a ética refere-se à
práxis
justamente porque somos aquilo que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa
ou virtuosa.
Na concepção aristotélica, exposta
principalmente em sua Ética a Nicômaco,
temos que toda atividade humana visa
a um bem. A atividade ética do homem visa o bem perfeito, supremo, ou seja, a
felicidade (eudaimonia). O que é esta
felicidade? É o bem viver e o bem agir. Como alcançar este fim? É tarefa da
reflexão ética indicar o caminho.
Segundo Aristóteles, a felicidade consiste em atividades virtuosas. Com
efeito, se a prática ética é o caminho para a felicidade, o indivíduo virtuoso
é aquele que sente prazer em agir segundo a “reta razão”. Em outras palavras, é
aquele que adquiriu o hábito (ethos) da vida ética.
Neste
ponto, importa questionar: mas o que é a virtude que pode nos conduzir à
felicidade? Aristóteles assinala a existência de duas formas de virtude, ou de
excelência (areté): as virtudes
morais e as intelectuais. É a articulação entre ambas que permite definir o sujeito ético. As virtudes morais são adquiridas em resultado do hábito, elas não surgem em nós por natureza, mas as adquirimos pela prática, como acontece com as artes. Já as virtudes intelectuais são o resultado do ensino, e por isso precisam de experiência e tempo.
No que diz respeito às virtudes
morais, é preciso frisar que a falta ou o excesso as destroem, como a falta ou
o excesso de bebidas e alimentos destroem a saúde. Por isso, se diz que a ética
aristotélica visa o equilíbrio, o “justo meio” (mésotes). Com efeito, o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a
carência. Mas, o meio termo é uma forma digna de louvor. Logo, a virtude é uma
espécie de mediana.
A virtude moral não é uma paixão
ou faculdade da alma, afirma Aristóteles, mas uma disposição de caráter (
exis). Mais ainda, ela diz respeito
àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão ou
escolha. A escolha envolve um
princípio racional e o pensamento, ou seja, ela é aquilo que colocamos diante
de outras coisas. Seu objeto é algo que está em nosso
alcance e é desejado após a deliberação. No entanto, vale lembrar que só
podemos deliberar sobre aquilo que está sob nosso alcance. Não se delibera
sobre realidades eternas, por exemplo, ou dados naturais. Mas, como o fim é
aquilo que desejamos e o meio aquilo que deliberamos e escolhemos, as ações
devem concordar com a escolha e serem voluntárias. De fato, o exercício da
virtude diz respeito aos meios, logo, a virtude está em nosso poder de escolha.
Em
outras palavras, podemos escolher entre a virtude e o vício, porque se depende
de nós o agir, também depende o não agir. Depende de nós praticarmos atos
nobres ou vis, ou então, depende de nós sermos virtuosos ou viciosos: “O homem
é um princípio motor e pai de suas ações como o é de seus filhos”, diz
Aristóteles.
Na Ética a Nicômaco, Aristóteles lista uma série de virtudes morais: coragem,
temperança, liberalidade, magnificência, magnanimidade, dentre outras. Sem nos
alongar neste ponto, convém tão somente sublinhar que a mais importante delas é
a justiça. O homem virtuoso é, forçosamente, um homem justo.
Na sequência, Aristóteles se encaminha para a definição das virtudes intelectuais. Como nota o filósofo, a origem da ação é a escolha, e a da escolha é o desejo e o raciocínio em vista de um fim. Logo, “a escolha não pode existir nem sem a razão e intelecto, nem sem uma disposição moral; pois a boa ação e o seu contrário não podem existir sem uma combinação de intelecto e de caráter” (1139a, 30). Assim, a ordem ética não pode existir senão implicando formal e essencialmente a inteligência prática.
A virtude é uma força interior do
caráter, que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade
guiada pela razão. De fato, cabe a esta última o controle sobre instintos e
impulsos irracionais descontrolados que existem na natureza de todo ser humano.
Dentre as virtudes intelectuais, é a prudência
ou sabedoria prática que nos permite deliberar
corretamente sobre o que é bom e conveniente para ele. A prudência, para
Aristóteles, é, na verdade, uma virtude que é condição de todas as outras e se
encontra presente em todas as outras.
O prudente é aquele que, em todas
as situações, é capaz de julgar e avaliar qual a atitude e qual a ação que melhor
realizarão a finalidade ética, ou seja, entre as várias escolhas possíveis, qual
a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para si e
para os outros. É ela que permite a escolha racional do meio termo, o domínio
da razão sobre a desmesura das paixões.
Mas, a realização ética do ser
humano não ocorre de modo segregado. De acordo com Aristóteles, o homem é um
“animal político” (
zoon politikon).
Portanto, sua vida ética se materializa na Cidade, na companhia de outros. Não
por acaso, o filósofo assinala que a amizade (
philía) é um elemento fundamental para a
reciprocidade inerente ao convívio social, ao qual estamos predispostos por
natureza. Assim, não basta apenas um governo virtuoso, justo (aquele que
governa tendo em vista o bem comum, o justo e o útil para todos), por exemplo,
para que uma comunidade desabroche. É preciso que seus membros estabeleçam
relações de amizade entre si, tanto quanto a relação entre o governo e os
membros da Cidade também deve ser de amizade. Na verdade, é preciso haver uma articulação
entre essas relações – o que, no fundo, expressa a articulação necessária, no
pensamento aristotélico, entre ética e política. Pois, as formas de
governo corretas, justas, implicam na amizade do governante em relação aos
governados e são capazes de promover esta virtude nas relações entre os súditos.
Por conseguinte, proporcionam um ambiente propício ao bom convívio, às boas
ações e à busca da felicidade, o que favorece a conservação do caráter virtuoso
do governo. As formas degeneradas, por sua vez, conduzem a uma supressão da
amizade, pois aquele que governa, o faz de tal modo a reverter todos os
benefícios para si e para os seus, e não para o coletivo. Como consequência, criam
obstáculos ao agir ético dos cidadãos e perpetuam a injustiça e os vícios na
ordem pública.
Em suma, no pensamento aristotélico, a conduta ética é
aquela na qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar.
Refere-se, portanto, ao que é possível e desejável para um ser humano. Saber o
que está em seu poder significa, acima de tudo, não ser conduzido pelas circunstâncias,
nem pelos instintos ou por uma vontade alheia, mas afirmar sua independência e autonomia. Por isso, o filósofo conclui que a felicidade completa só pode ser atingida pela "vida contemplativa", a vida totalmente guiada pela razão.
Com efeito, o sujeito ético ou moral é aquele que não se
submete aos acasos da sorte, à vontade e aos desejos de outrem, à tirania das
paixões, mas obedece tão somente à sua consciência – que lhe permite conhecer o
bem e as virtudes – e à sua vontade racional – que lhe indica os meios
adequados para chegar aos fins morais. A busca do bem e da felicidade são, em
suma, a essência da vida ética, cuja realização máxima, porém, ocorre no âmbito
social, no âmbito de uma comunidade política igualmente virtuosa.
Indicações bibliográficas
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco – diversas edições.
HÖFFE, Otfried. Aristóteles – introdução. Trad. Roberto Hofmeister Pich. Porto Alegre: Artmed, 2008.
PHILIPPE, Marie-Dominique. Introdução
à filosofia de Aristóteles. Trad. Gabriel Hibon. São Paulo : Paulus,
2002.