sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Sobre a Antropologia Filosófica

O foco da Antropologia Filosófica é estudar e compreender o homem em sua totalidade, isto é, como um ser que se expressa em diversas dimensões. Conquanto possam ser analisadas separadamente, tais dimensões se apresentam interpenetradas em cada indivíduo. Para Henrique Vaz, “a originalidade da experiência que está nos fundamentos da Antropologia filosófica consiste na tematização do homem sujeito enquanto ‘sujeito’, (...). Mas essa experiência não se refere à subjetividade abstrata do ‘Eu penso’, [mas a] uma experiência ‘situada’, pois só enquanto situado, ou circunscrito pela finitude da ‘situação’, o homem pode tornar-se ‘objeto’ de si mesmo na pergunta filosófica”.

Nesse quadro, o conceito de pessoa surge diretamente relacionado com nossa individualidade. Para Sartre, por exemplo, a definição de pessoa é possível sob dois aspectos: em primeiro lugar, na medida em que a consciência humana é “presença-a-si”, isto é, separada de si por nada (no francês, néant). O segundo aspecto é a falta constituinte do ser do homem, que faz com que ele sempre se lance ao mundo, para os possíveis que são seus possíveis ou, em outros termos, é sua ipseidade. Assim, complementa o filósofo existencialista, a pessoa se define como “livre relação a si”. A “dignidade” do homem, para utilizarmos a expressão de Pascal, reside justamente na possibilidade de relacionarmo-nos conscientemente conosco mesmos e com o mundo.

Uma vez que o homem não é puramente consciência, nem puramente coisa, mas é um ser-no-mundo, encontra-se encarnado no mundo, compartilhando da mesma “carne” do mundo a partir de seu próprio corpo, como diz Merleau-Ponty, só podemos pensar o homem em termos de totalidade. Não uma totalidade plena, inerte, mas uma “totalidade-destotalizada”, na medida em que sempre estamos abertos ao futuro, por nossa liberdade. Mas, precisamente por ser totalidade, “não podemos esperar recompô-la por uma adição ou por uma organização das diversas tendências”, mas pelo contrário, “em cada inclinação, em cada tendência, [a pessoa] se exprime inteiramente, um pouco como a substância espinosista se exprime completamente em cada um de seus atributos”. É nesse sentido que Cassirer diz que a possibilidade de compreender o homem em sua unidade está corporificada “na convicção de que os raios variados e aparentemente dispersos [i.e. as diversas dimensões que nos compõem – V.S.] podem ser concentrados e levados a um foco comum”.

Se o homem pode ser pensado em diversas dimensões (consciente, espiritual, biológica ou vital, intersubjetiva ou social, etc.), o exame em separado de cada uma delas seria uma operação puramente analítica. Ser consciente-de-si, operar o famoso “conhece-te a ti mesmo” socrático, é compreendermo-nos enquanto seres corporais carnalmente ligados ao mundo, aos outros seres, à totalidade do Ser e, ao mesmo tempo, irremediavelmente diferenciados deles. Quer dizer, o homem é uma totalidade de dimensões que se interpenetram na medida em que ele co-pertence ao mundo, mas também se diferencia dos outros seres (assim como nos diferenciamos uns dos outros) por sua liberdade, por sua consciência, seu “espírito”. Mas, como ressalta Sartre, cada homem é sua própria totalidade. Em outros termos, cada homem é uma pessoa, uma ipseidade que se projeta no mundo, que imprime ao mundo a marca de sua liberdade.
.
No entanto, se nos movemos no terreno aberto pela Antropologia Filosófica, uma questão se impõe - e, aparentemente, ela torna-se insolúvel se nos limitarmos a seus domínios: como pensar a liberdade, por conseguinte a própria definição de homem, como dados a priori, se devemos situá-lo numa sociedade que reifica todas as relações pessoais, bem como a própria noção de subjetividade, imprimindo nelas, mesmo que de modo cifrado, os caracteres da “forma mercadoria”? Dito de outro modo, numa sociedade pautada pelas leis de reprodução do capital e por suas exigências, pela forma como elas moldam todo o conjunto da vida social (e, por consequência, também a vida individual) ainda faz sentido falar numa antropologia positiva, que carregue uma definição a priori (portanto, uma essência) de homem, que escaparia às determinações da vida social contemporânea, e se ergueria como ideal ser (re)alcançado? Na verdade, não seria mais factível, se quisermos manter a validade de uma pesquisa antropológica no âmbito da filosofia contemporânea, conceber uma espécie de antropologia negativa (na qual os agenciamentos, por exemplo, de Adorno, poderiam abrir alguns caminhos interessantes), que se paute pela realidade do homem tal como ela se dá na sociedade capitalista atual, isto é, pelos atributos que o modo de produção vigente lhe confere, e a partir dos quais a própria definição de homem, deixando o terreno da pura especulação, torna-se, também ela, sujeita ao  inescapável movimento do real? É um debate aberto.

Referências bibliográficas:

CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
SARTRE, Jean-Paul. L’Être et le Néant – essai d’ontologie phénoménologique. Édition corrigée avec index par Arlette Elkaïm-Sartre. Collection Tel. Paris: Gallimard, 2007.
VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia Filosófica – vol. I. 8ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
_______________________. Antropologia Filosófica – vol. II. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

2 comentários:

  1. Puxa! Seu texto vai me ajudar bastante num trabalho de antropologia filosófica! Gostaria de continuar o contato.
    Obrigada!!!!!!!
    Erione

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Erione!

      Fico feliz em poder ajudar. Quanto ao contato, no lado direito do blog, na parte de cima, tem um link "Contato". Será um prazer.

      Abraço
      Vinícius

      Excluir