sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Um ano intenso

2016 foi um ano intenso – o que não significa dizer positivo. Para todos os efeitos, na verdade, foi histórico. Um ano em que todos os dias levantávamos a espera de uma notícia bombástica. E, invariavelmente, ela vinha, na forma de tragédias e mortes, ou jogando constantes baldes de água fria em todos que se preocupam com o futuro do país. Neste último aspecto, o ápice, claro, foi o golpe que apeou Dilma Rousseff da presidência, e mergulhou o país em uma agenda abertamente regressiva.

Mas, como desgraça pouca é bobagem, a deposição de Dilma se inscreve em um cenário de recrudescimento da extrema-direita pelo mundo, simbolizado pelo Brexit e pela eleição de Trump, cujo desfecho ainda é imprevisível. Nesse sentido, 2017, no Brasil e no mundo, será um ano em que esses movimentos deverão ganhar contornos mais definitivos, respondendo algumas questões latentes neste fim de 2016. Por exemplo: até que ponto Temer conseguirá se manter na presidência e impor seu (e do PSDB) programa de reformas neoliberais? A Lava Jato conseguirá cumprir sua missão maior, ou seja, prender Lula e criminalizar simbolicamente toda a esquerda? E ainda: para onde vão os EUA e a Europa diante da força dos discursos ultranacionalistas, xenófobos e racistas?

Do ponto de vista pessoal, porém, o ano foi positivamente marcante. Em que pesem algumas decepções particulares e a raiva com o fraco desempenho do São Paulo, 2016 fica marcado em minha vida como o ano da realização de mais um sonho profissional: a aprovação em concurso para professor efetivo de uma universidade pública (a UFBA). Angelica, minha esposa, que segurou a barra durante todo o período de tentativas e frustrações, é a única pessoa que tem ideia do que essa conquista significou. E fica aqui meu registro público de que, sem o apoio dela, essa conquista seria impossível.

Enfim, não obstante o próximo ano aparentemente não despontar com as cores mais brilhantes, é preciso manter um fio de esperança. O futuro não está pré-determinado, mas depende exclusivamente de nossas ações. Por isso, desejo sinceramente a todos os leitores e leitoras do blog um ano de sucessos e realizações, tanto pessoais quanto nacionais.

O blog retorna em breve!!!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A morte e a ausência de Deus: "O sétimo selo" de Bergman à luz da filosofia de Sartre

Motivado por uma atividade na UFBA, resolvi escrever este post esboçando uma interpretação do filme O sétimo selo, do diretor sueco Ingmar Bergman, à luz da filosofia de Sartre. Mais particularmente, de um eixo temático comum a ambos: a ligação entre a existência de Deus e a morte.

O enredo do filme – cujo título remete a uma passagem do Apocalipse, na Bíblia – é relativamente simples: no final da Idade Média, um cavaleiro e seu ajudante retornam das Cruzadas e se deparam com uma população avassalada pela Peste. O cavaleiro, Antonius Block recebe a visita da Morte e, a fim de estender sua vida, convida-a para um jogo de xadrez. Se perdesse, partiria com ela. Enquanto o jogo não terminasse, permaneceria vivo, em busca de um sinal da existência de Deus e de que sua vida não teria sido em vão. A Morte, que nunca fora derrotada, aceita o desafio.

A partir daí, o filme retrata a jornada de Block em busca das respostas à suas aflições existenciais em um mundo fortemente marcado pela religiosidade e pelo medo. Neste contexto, dois temas tipicamente afeitos ao pensamento de Sartre brotam ao longo da película. O primeiro é precisamente a busca por um sentido transcendente, uma justificativa para a vida, que atravessaria o próprio ser do homem, mas cuja resposta seria impossível, dada a ausência de Deus. Por exemplo: em dado momento, Block se desespera porque quer abandonar tudo, se entregar ao seu inevitável destino, mas, ao mesmo tempo, sente-se incapaz dessa resignação, porque não consegue se desvencilhar da dúvida, da inquietação por saber se sua vida, integralmente dedicada a Deus, teria tido algum sentido. Com efeito, Bergman elabora uma a permanente tensão que perpassa toda a jornada de Block: a tensão entre sua crença, isto é, o desejo de que Deus forneça algum sinal de que a vida – a sua em particular, mas também a de todos acometidos pela tragédia, que não abandonam a fé – e a ausência de qualquer resposta concreta. O fracasso, a paixão inútil do ser humano, diria Sartre.

Nesse sentido, quase como um Sancho Pança do célebre romance de Cervantes, o ajudante de Block, Jöns, funciona no filme como uma espécie de “voz da razão”. Cético, em toda oportunidade aponta para a gratuidade do existir – a contingência do ser, para usar outro conceito de Sartre. Isso fica claro, por exemplo, no momento em que uma mulher acusada de “bruxaria” – por conseguinte, culpada pela disseminação do castigo da Peste – será crucificada e queimada. Observando seu olhar aterrorizado e sem direção nos instantes que precedem a sua terrível execução, Block se pergunta o que ela estaria vendo. Jöns, sem rodeios, simplesmente responde: “O vazio”. Em outros termos, ela estaria percebendo, à beira da morte, que não há nada: nem além, nem salvação...

Mas, a cena mais emblemática do filme talvez seja aquela em que Block vai a um confessionário e ali expõe sua angústia. O diálogo denso, típico da obra de Bergman, sintetiza as questões filosóficas de O sétimo selo. E igualmente ilustra a inevitabilidade do fim. Isso porque Block pensa estar conversando com um padre, quando, na verdade, é a própria Morte quem está no confessionário. Enganado, acaba entregando uma jogada que faria na partida de xadrez e que, a seu ver, resultaria em vitória. A Morte está sempre um passo a frente. Seu triunfo ante a vida é inexorável.

Aqui, no entanto, convém fazer uma ressalva no que diz respeito à aproximação de O sétimo selo com Sartre. É que, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o pensamento sartriano em nenhum momento abraça o niilismo – como o longa pode eventualmente respaldar. Não haver sentido a priori para a existência humana, não haver justificativa para estarmos aqui, não haver Deus, enfim, não representa, para o filósofo, a simples celebração da gratuidade. Pelo contrário, Sartre entende que todos esses elementos convergem para a afirmação da absoluta liberdade (e, consequentemente, responsabilidade) do ser humano diante de si, de outrem, do mundo. Têm, portanto, um caráter antes positivo do que negativo. Não se trata de ceder ao desespero diante do desamparo da solidão existencial, mas de tomar a contingência como ponto de partida para a criação de sentido. 

Finalmente, nessa linha, a última tomada do filme permite reaproximar Bergman e Sartre – ao menos, o Sartre dos anos 1930, 1940, francamente empenhado em uma literatura engajada, e uma interpretação não niilista do filme. A ciranda da Morte leva todos os personagens do filme, exceto um casal de artistas com seu bebê. De certo modo, pode-se afirmar que a arte aparece, para o diretor sueco, como fonte de salvação: provisória, pode-se replicar. Ainda assim, no entanto, como salvação. Com Sartre, se poderia complementar: não como salvação para o além, mas como meio de conferir algum sentido no aqui e agora da vida diante da absoluta gratuidade do real – o que também, de certo modo, é um “salvar-se”. Aliás, é essa conclusão a que chega Antoine Roquentin, protagonista do romance sartriano A náusea. Ou, para usar uma feliz definição do recém-falecido Ferreira Gullar: “a arte existe porque a vida não basta”. Bergman e Sartre certamente ratificariam as palavras do poeta brasileiro.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Chapeocense, Ferreira Gullar e o aprendizado da vida

Desnecessário dizer o quão pesada foi a semana que passou. Optei por nada escrever até agora, porque não conseguia achar palavras capazes de descrever a tragédia. Eis que, nesse domingo, também se foi o grande poeta maranhense Ferreira Gullar. E, por essas trágicas casualidades, encontrei nos versos de "Aprendizado" uma forma de expressar um pouco desse drama cheio de contradições que é viver. Drama que desvela suas entranhas justamente quando nos deparamos com a fragilidade da vida.


Aprendizado
(Ferreira Gullar)

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.


terça-feira, 22 de novembro de 2016

Neoliberalismo, subjetividade e crise da democracia

A eleição de Donald Trump à presidência dos EUA acendeu um alerta global. Particularmente, porque parece desnudar algumas das mais agudas contradições das “democracias ocidentais” contemporâneas. Com efeito, não por acaso, a questão que atravessou a cena política desde o último dia 09/11 pode ser resumida do seguinte modo: como teria sido possível que, em uma democracia consolidada como a norte-americana, um fenômeno de viés proto-fascista, como a candidatura de Trump, pudesse prosperar?

Este texto propõe uma resposta a essa indagação que não se pretende exclusiva, mas que, dentro dos limites que o espaço impõe, visa realçar aquilo que entendemos ser a causa subterrânea desse acontecimento. O que sugerimos aqui é que o significado dessa vitória se assenta, ainda que de modo aparentemente remoto, nos pilares do modelo de globalização dominante desde os anos 1980, comumente denominada “neoliberalismo”. Ou, para ser exato, em seu fracasso. Em linhas gerais, adotamos a perspectiva de que a fissura aberta na hegemonia neoliberal pela crise econômica de 2008 ganhou agora (somada ao Brexit, sobretudo) uma notável – e preocupante – complementação ético-política.

Nesse sentido, importa inicialmente destacar que, a nosso ver, uma das principais consequências da emergência da nova era de acumulação capitalista foi a correspondente formatação de um novo tipo de subjetividade. Trata-se da dissolução quase completa da antiga identidade baseada na articulação entre indivíduo e trabalho social – que, como Hegel bem observara, presidiu a constituição da subjetividade moderna –, em nome daquilo que Pierre Dardot & Christian Laval bem classificaram como uma “hiper-subjetividade”: o sujeito “desobjetivado”, ensimesmado, constrangido ao novo, à mudança, porque sem possibilidade de estabelecer laços efetivos com o mundo (materiais ou espirituais, geográficas ou jurídicas). Não que o vínculo entre sujeito e trabalho tenha desaparecido, ou que este último tenha perdido sua centralidade. Ocorre que, dada sua mútua imbricação, as mudanças profundas sofridas no mundo laboral não poderiam deixar de impactar na própria constituição e expectativas dos sujeitos contemporâneos.

Aqui, por mudanças profundas entenda-se, não apenas as revoluções tecnológicas inquestionáveis, mas, sobretudo: o esforço permanente de desregulamentação e precarização da mão de obra assalariada, a desindustrialização, a ameaça constante a direitos adquiridos etc. Ora, não apenas, do ponto de vista material, este cenário consolidou uma nova forma de proletarização – os trabalhadores “precarizados”, mais sujeitos às vicissitudes e à instabilidade da reprodução do capital, sem empregos fixos, sem direitos, com um acesso cada vez mais restrito à esfera do consumo –, mas, do ponto de vista ético, dissolveu a base dos antigos mecanismos de subjetivação, baseados na hegemonia das formas clássicas de trabalho e de seus processos de socialização correlatos.

Como era de se esperar, porém, essa dissolução agora cobra seu preço. Do novo “mundo do trabalho” seguiu-se a formação de uma massa de indivíduos sem identidade, fragmentados, abandonados à própria sorte, permanentemente ameaçados de serem lançados às margens de um sistema que, com a mesma velocidade, promete e retira suas perspectivas de futuro. Se o mundo globalizado, como explica David Harvey, caracteriza-se pelo imperativo da mudança permanente, pelo rápido giro temporal exigido pelos novos padrões de acumulação capitalista, o temor e a insegurança daqueles – a maioria – que não podem usufruir das eventuais benesses desse novo modo de vida, ou que se tornaram vítimas em potencial de sua volubilidade intrínseca, torna-se inevitável. Tanto quanto são inevitáveis suas repercussões éticas.

Com efeito, o cenário rapidamente descrito proporciona, dentre outras coisas, o surgimento daquilo que, há quase duas décadas, Immanuel Wallerstein alertava como sendo “a era do grupismo”. Ao afrouxamento do tradicional processo de subjetivação calcado na articulação sujeito-trabalho – logo, em determinada relação de pertencimento do indivíduo à sociedade –, surgiam tentativas múltiplas, difusas, frequentemente contraditórias, da sempre necessária constituição de subjetividade e socialização, a partir do atrelamento individual a um grupo qualquer que transmita algum sentido de pertencimento – uma comunidade religiosa, uma torcida organizada, uma gangue etc. Ocorre que, nesse momento de fragmentação absoluta, o “grupismo” exige, como condição de funcionamento, a construção de seu outro, a partir do qual o grupo, ente fechado em torno de seus membros, pode se reconhecer enquanto tal, garantindo sua unidade e coesão. Em outros termos, a identidade particular do grupo se forma pela oposição com seu exterior – o diferente, o adversário, o inimigo, o infiel.

O que se insinua aqui é que este quadro global complexo, em que elementos materiais, políticos e éticos se entrelaçam, permite a um outsider como Trump atacar um problema real – a crescente (ameaça de) penúria material provocada pelos processos econômicos e políticos de precarização do trabalho, com suas consequências objetivas e subjetivas – através de fórmulas simplistas, mas de fácil assimilação, porque seu eixo não se volta para o futuro, fatalmente incerto – e, portanto, indesejável diante da instabilidade corrente daquela massa –, mas se dirige à fixidez do passado (real ou imaginário, pouco importa). Numa palavra, promete restabelecer a “segurança” de um suposto tempo “glorioso”, “puro”, desde que tudo aquilo que se interpõe à concretização desse ideal – ou seja, todos aqueles “outros” que seriam responsáveis pelas transformações que culminaram no presente – seja removido. Desse modo, o magnata forneceu para seu eleitorado, acima de tudo, uma identidade grupal sólida (de cunho extremamente nacionalista, proto-fascista), capaz de transmitir àqueles que se sentem ameaçados pelos dissabores econômicos, e abandonados pela “política tradicional” – isto é, que sentem a falência da democracia guiada pelos políticos do establishment –, uma nova forma de integração e de subjetivação, calcada em um conflito permanente contra seu “outro”, mas no qual, aqueles que “nada têm a perder”, mostram-se dispostos a se engajar.

O desfecho desse cenário, evidentemente, é trágico: se a política é, por essência, democrática, e demanda uma ética de respeito e diálogo com o outro, como sugeria Hannah Arendt, o que se tem aqui é o triunfo da anti-política, de uma ética às avessas, por assim dizer. Ambas costuradas sobre o tecido da crise da sociedade capitalista neoliberal, mas que, como se nota, passam longe de resolvê-la.

Ademais, para além da importância que a eleição norte-americana tem para o mundo, é preciso notar que algo semelhante se passa, dentro de nossas idiossincrasias, no Brasil. Com efeito, na esteira do contexto de criminalização da esquerda (em sentido bastante amplo) que teve como ápice o recente processo de impeachment, o crescente apoio a discursos extremistas, o fortalecimento do poder das igrejas evangélicas, os projetos que visam suprimir o pensamento crítico-formativo das escolas etc., são sinais da construção progressiva de uma práxis política anti-democrática, de uma ética da beligerância típica do proto-fascismo que encontrou em Trump um porta-voz global. O que resta é saber se aqui, como lá, o desfecho será o mesmo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Led Zeppelin - IV

Há exatos 45 anos, em 07 de novembro de 1961, o quarto álbum do Led Zeppelin chegava às lojas – e entrava para história. Para resumir o que penso de IV (o disco, na verdade, não tem nome, mas é chamado de IV justamente por ser o quarto trabalho da banda), diria o seguinte: se um extraterrestre chegasse à Terra e quisesse saber o que é rock'n'roll, eu poderia gastar horas explicando o ritmo, a história, as bandas; ou poderia deixá-lo ouvir essa obra-prima. 

Confira, no link abaixo, a íntegra desse clássico. Audição obrigatória para qualquer amante da música.


sábado, 29 de outubro de 2016

Desalento

Depois de um período de inatividade, provocado pela minha mudança para a Bahia, é hora de retomar a atividade no blog. Durante este quase um mês em que deixei de publicar, como se sabe, muita coisa ocorreu em nosso país. Desnecessário enumerá-las aqui. O que vale registrar é que, em sua maioria, as notícias são negativas. E, confesso, embora minha vida pessoal/profissional esteja caminhando bem (em que pese a ausência momentânea de minha esposa, mas isso é outra história) escrevo este texto tomado de certo desânimo.

Sim, recentemente houve a (tardia) prisão de Eduardo Cunha. Sim, o movimento corrente das escolas ocupadas é uma bafejada de ar fresco nas lutas sociais. No entanto, ainda é muito pouco. Como disse no post anterior a este, escrito no início de outubro, as eleições deste ano cristalizaram a esquerda em uma posição claramente defensiva. Não apenas em relação ao resultado eleitoral, mas – o que é mais preocupante – do ponto de vista da batalha de ideias. Basta ver as pautas dos vencedores para constatar que houve uma perda “cultural” dos setores progressistas em relação aos temas que lhe são caros.

Mais ainda: a esse momento de recuo forçado segue-se, como era de se esperar, uma ofensiva contra os direitos populares que há tempos não se via. A PEC 241 (agora, no Senado, PEC 55), bem como a decisão do STF de permitir aos órgãos públicos cortar ponto de funcionários grevistas tão logo deflagrem a paralisação, são a parte mais visível de um processo que começou há muitos meses. Basta se lembrar das falas de Romero Jucá interceptadas pela PF, ainda antes do impeachment, na qual ele insinuava a necessidade de um “grande acordo nacional” que envolvesse “todos os poderes” – a começar pela destituição de Dilma. O resultado desse acordo começa a se tornar palpável: o novo Executivo e o Legislativo, agora em perfeita sintonia, aprovam ataques à população, sob as vestes da proteção de um Judiciário cúmplice, atento apenas para seus interesses corporativos. E, aparentemente, sem qualquer esboço de reação por parte dos setores populares.

Desalentador? Sem dúvida. E admito que não me agrada escrever posts nesse nível de pessimismo. Mas, convenhamos, está difícil enxergar qualquer luz no fim do túnel. A menos que seja a de um trem desgovernado vindo em nossa direção...

domingo, 2 de outubro de 2016

A esquerda na defensiva

Difícil falar ainda no calor do momento. Mas, o resultado é inapelável: anos e anos de forte campanha midiática e cultural contrária deram resultado. A capilaridade da esquerda foi destroçada nessas eleições. Na esmagadora maioria das cidades grandes e médias, PT e PCdoB foram praticamente varridos do mapa. O sucesso do PSOL de Marcelo Freixo, no Rio, infelizmente é apenas a exceção que confirma a regra. A esquerda encontra-se, toda ela, na defensiva.

Mais do que nunca, nessa situação dramática, é hora de juntar os cacos e, com serenidade e capacidade de autocrítica, se unir e se repensar. Uma reorganização da esquerda brasileira – toda ela – é urgente. O Brasil não merece o futuro que se avizinha.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

50 anos sem André Breton

Neste 28 de setembro de 2016, completam-se 50 anos do falecimento de um dos maiores artistas do último século: o pai do surrealismo, o francês André Breton.

Conheci Breton na época de faculdade. Quer dizer, já tinha ouvido falar do surrealismo, nas aulas de literatura do colegial sobre as vanguardas artísticas modernas, mas foi mais tarde que o movimento realmente chamou minha atenção. “Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer”. Era a plena exaltação da liberdade, da imaginação, da criatividade, do sonho – mas, sem deixar de lado o real. Conjugação difícil, sem dúvida, mas não impossível, como Breton demonstrava.

Com efeito, a leitura dos Manifestos do surrealismo foi marcante, dentre outras coisas, porque representava, naquele momento, a tradução do que procurava para minha vida: a conjunção entre a rebelião romântica expressa no imperativo de “mudar a vida”, de Rimbaud, com o “transformar o mundo”, orientado por uma perspectiva não dogmática, de Marx – ambos, entrelaçados pela psicanálise freudiana. “Do ponto de vista intelectual”, explicava em 1930, “tratava-se, trata-se ainda, de por à prova por todos os meios e de fazer reconhecer a qualquer preço o caráter factício das velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita por parte do homem, nem que fosse por lhe dar uma ideia minguada de seus meios, ou por desafiá-lo a escapar em dimensão válida à coerção universal”.

Depois dos referidos Manifestos, vieram Vasos comunicantes, os poemas, o romance Nadja, o Manifesto por uma arte revolucionária e independente (escrito com Diego Rivera e Léon Trotsky) e a abertura para outras expressões artísticas surrealistas: o cinema fantástico de Luis Buñuel e Federico Fellini, a pintura de Magritte, Juan Miró e daquele que considero o maior pintor do século XX, Salvador Dalí (cuja obra, em grande parte, tive o enorme prazer de apreciar em uma exposição em Paris, em 2013, num dos momentos mais sublimes de minha estadia por lá).

Nesses tempos obscuros que vivemos – poderia dizer: surreais, no sentido mais pejorativo que por vezes se aplica ao termo –, que a arte de Breton possa servir de alento ao espírito e combustível para não deixar morrer os nossos sonhos mais altos de liberdade: “No meu modo de entender nada existe de inadmissível. O irreal é tão verdadeiro como o real. O sonho e a realidade são vasos comunicantes”.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Bob Dylan - The times they are a-changin'

Os tempos estão mudando... pessoalmente, uma nova fase profissional, há tempos sonhada, está prestes a começar. O país, por outro lado, vive tempos difíceis. A tardia, conquanto justíssima, cassação de um dos cânceres da política brasileira, Eduardo Cunha, não apaga a mácula do golpe jurídico-parlamentar impetrado inicialmente por ele contra a presidenta Dilma Rousseff. Sem dúvida, um tempo de resistência se abre, mas, sem ilusões: o próximo período será muito difícil, como muitos já estão começando a se perceber.

E Bob Dylan, nesse momento, é uma ótima pedida. Aliás, não só nesse: Dylan é sempre essencial. Por isso, fiquem com essa apresentação de 1964 do cantor e compositor inglês, interpretando um de seus clássicos, The times are a-changin'.


quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Golpe consumado: a democracia é uma página virada da nossa história

31 de agosto de 2016. Um dos dias mais trágicos da história do Brasil. Dia em que nossa jovem democracia foi solenemente escanteada – sem tanques, ao vivo na TV, dentro do Parlamento – praticamente sem reação efetiva por parte das vítimas.

É fato que os últimos anos de governo Dilma foram bem ruins. No entanto, jamais foi isso que esteve em jogo. O que sempre se quis foi esvaziar a soberania popular. Por isso, é difícil encontrar palavras nesse momento. A verdade é que Dilma, que mais uma vez se revelou uma mulher extraordinária durante seu interrogatório na última segunda, tinha seu destino selado há meses. Outra verdade, é que um sem número de seus "juízes" não tinha o menor traço de envergadura moral para dirigir-lhe a menor acusação. Mas, assim o foi. E, nesse sentido, parece ainda inimaginável que o país, que há poucos anos parecia ter encontrado uma mínima identidade e se encaminhava, ainda que a pequenos passos, rumo a um estado de bem estar para a maior parte de sua população, hoje se encontre nesse estado: prostrado, impassível, impotente ou iludido, diante de uma oligarquia que fez o impossível para retomar, sem qualquer intermediário, as rédeas do país. Oligarquia cujos braços se estendem por todos os poderes da República, e cujo único intuito, por trás do falso discurso anticorrupção, é reinserir o Brasil na vanguarda do atraso, conservando, assim, seu poder.

Finalmente, não tenham dúvidas: muitos dos que, ainda sem maior clareza, comemoram a queda de Dilma, sobretudo por não terem um apreço pessoal por ela, logo sentirão na pele os efeitos de seu apoio ou omissão diante dessa nova modalidade de golpe parlamentar-jurídico-midiático. Modalidade que, experimentada em países menores, jamais se poderia crer que atingiria um país com o peso e a (aparente) solidez do Brasil. Dura e cruelmente, porém, atingiu. A débil luz no fim do túnel acesa no início deste século se apagou. Resta saber se e quando teremos força para reacendê-la.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

As Olimpíadas foram um sucesso. Mas, e agora, como fica o nosso esporte?

As Olimpíadas foram, inegavelmente, um sucesso. Do lado de fora, mostramos, mais uma vez, do que somos capazes. Os jogos serviram para levantar um pouco nossa autoestima e recuperar nossa imagem diante de mundo, ambas tão desgastadas após o show de horrores do último 17 de abril, data da votação na Câmara dos Deputados do impeachment da presidenta Dilma. Do lado de dentro, grandes competições, descoberta de novos esportes, novos ídolos, recordes e momentos históricos que já deixam saudades.

Nesse quesito, aliás, é preciso perguntar: e agora? A pergunta é pertinente porque, apesar de ter alcançado seu melhor resultado em termos de medalhas, o esporte olímpico brasileiro tem um futuro um tanto quanto sombrio. Primeiramente, por conta de um problema crônico, que já abordei aqui no blog, logo após os jogos de Londres: a histórica falta de uma política esportiva de base, desde as escolas, que utilize o esporte em sua mais importante faceta em um país como o nosso: aquele da inclusão social. As ações até aqui arroladas nesse sentido ainda são tímidas, e estão longe de contemplar todo o potencial que temos. Quem sabe, o uso das instalações olímpicas que ficaram de legado não possam ser mais um passo rumo a esse ideal...

Ademais, no âmbito dos atletas de ponta, a situação que se avizinha pode ser catastrófica. Afinal, o governo Temer já anunciou que pretende por um ponto final nos programas de ajuda governamental aos atletas (que se estendem dos patrocínios de empresas estatais ao Bolsa-Atleta, passando também pelo acordo com as Forças Armadas). A grande maioria de nossos competidores no Rio era agraciada com algum apoio desse tipo, inclusive vários de nossos medalhistas. A melhora na classificação final, diga-se, é indissociável desse suporte, que se estende desde meados da década passada.

Caso Temer realmente extinga essa política de ajuda ao esporte, tanto sua capilarização fica extremamente prejudicada, quanto o desempenho em Tóquio 2020 corre sérios riscos de ficar aquém do que poderíamos. Por isso, passada a ressaca pós-Olimpíada, é fundamental que a sociedade, a começar pelos atletas, se organize e pressione (muito) para que a política de Estado de apoio ao esporte não seja mais uma área a sofrer os retrocessos do governo golpista.

sábado, 13 de agosto de 2016

Fidel - 90 anos

Amado por muitos, odiado por outros tantos, Fidel Alejandro Castro Ruz completa neste sábado, 13 de agosto de 2016, 90 anos. Marca incrível para qualquer ser humano comum. Mais surpreendente ainda para quem, segundo o insuspeito Guiness Book, sofreu mais de 600 tentativas de assassinato enquanto comandou Cuba, entre 1959 e 2006, e ousou desafiar o maior poder econômico-político-militar-cultural jamais visto.

Menos pelos erros inegáveis ou pelos acertos igualmente inquestionáveis enquanto governante – o balanço fica para outra oportunidade –, Fidel entrou para a história, a meu ver, sobretudo como símbolo da luta pela solidariedade e emancipação dos povos da América Latina no século XX.

Para ilustrar aquilo que entendo ser o seu maior legado, permito-me contar rapidamente de uma historinha de quando estive em Cuba, há quatro anos: estava conhecendo a famosa Bodeguita del medio, em Havana, quando, no intervalo do grupo musical que se apresentava, saí para tomar um ar. Do lado de fora, comecei a conversar com a cantora do grupo e com o segurança do local. Este, ao saber que eu era brasileiro, perguntou-me de imediato o que eu fazia. Ao ouvir que era estudante de filosofia, ele me disse: “Que bom, um filósofo brasileiro! Vocês têm muito a pensar, a fazer. Têm que ajudar Lula e Dilma a continuar transformando o Brasil, ajudar a transformar América”.

Aquelas palavras, para mim tão certeiras, mas absolutamente inesperadas, vindas de um cidadão comum, me tocaram por vários motivos. Um deles, foi precisamente porque ela expressava uma consciência crítica e uma solidariedade a que não estamos acostumados. Mas que, já notara, não eram incomuns naquele país. Mérito, sem dúvida, da consciência que o líder da Revolução Cubana incutiu no povo de seu país. “A batalha mais importante é a batalha das ideias”, costuma dizer.

Enfim, essa é a maior herança, para mim, que fica de Fidel Castro: ter demonstrado, à América e aos países do dito “terceiro mundo”, que eles poderiam ser senhores de seu destino. Como fica claro no vídeo abaixo, que contém um dos mais célebres discursos – se não o mais – do líder cubano, proferido na ONU, em 1979, essa foi, desde sempre, sua luta. É ela, ao fim e ao cabo, que permanecerá. É por essa herança que a história o julgará. E é ela que hoje deve ser celebrada.

“As bombas podem matar os famintos, os doentes, os ignorantes, mas não podem matar a fome, as doenças, a ignorância. Tampouco podem matar a justa rebeldia dos povos, e no holocausto também morrerão os ricos, que são os que mais têm a perder neste mundo”.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Elis Regina - Gracias a la vida

Momentos em que tudo parece dar certo são raros. Muitos, inclusive, duvidam que eles possam ocorrer. Eu talvez estivesse entre os céticos. Mas, hoje, não posso negar, minha vida passa por uma ótima fase. Aprovação em concurso para professor, mudanças positivas à vista, casamento indo bem, planos para o futuro, em suma, um sentimento de realização, tanto pessoal quanto profissional.

Não sei o que ocorrerá na sequência, se as coisas continuarão a correr bem, se conseguirei superar os desafios que me aguardam daqui para frente. Mas, hoje, só posso agradecer. Agradecer às pessoas ao meu redor, à minha família, pelo que me proporcionou, à Angelica, pelo apoio incondicional e pela paciência, enfim, agradecer à vida.

E, para isso, deixo vocês com uma belíssima canção que ilustra esse momento. Aquela que talvez seja a mais bela voz da MPB, Elis Regina, numa interpretação sublime de Gracias a la vida, da argentina Violeta Parra.

Um brinde à vida!!!


segunda-feira, 18 de julho de 2016

6 anos!!!

E essa é semana de comemorar mais um aniversário do blog! Um espaço que começou como “válvula de escape” das obrigações do cotidiano, mas que foi crescendo, se consolidando, e agora completa 6 anos de publicações ininterruptas!

Quero agradecer imensamente a todos os leitores e leitoras: quem acompanha rotineiramente, ou apenas de modo esporádico, a quem comenta, fazendo elogios, críticas, sugestões, quem eventualmente usa o blog como fonte para reflexões ou por lazer... De coração, muitíssimo obrigado! Vocês não têm ideia de como é importante para mim o retorno daquilo que publico. É o combustível necessário para seguir em frente.

Grande abraço e vamos para mais um ano!

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Heidegger e a "destruição" da metafísica

Via de regra, os estudiosos de Heidegger dividem seu pensamento em duas grandes fases. Uma primeira até o final da década de 1920, sintetizada em sua obra magna, Ser e tempo, e outra, que se inicia com a preleção O que é metafísica, de 1929, e se estende até sua morte, em 1976. Em comum, ambas têm como pano de fundo aquela que Heidegger considera ser a questão fundamental a filosofia: a questão sobre o sentido do ser.

A questão do ser, die Seinsfrage, é pensada por Heidegger à luz de uma “destruição” (Destruktion) ou “desconstrução” (Abbauen) de todo o pensamento metafísico ocidental. Para compreendê-la, é preciso inicialmente distinguir duas acepções do termo ser. Há o verbo ser, empregado no sentido de existir (ser vermelho, ser mesa, ser mulher, se etc.), e o substantivo (um ser vivo, um ser humano, um ser divino etc.). Heidegger emprega o vocábulo ente (Seiende, no alemão) para esta última acepção, e deixa a palavra ser (Sein) exclusivamente para a primeira. Todo ente é, está presente, existe. Mas, todo ente tem um ser: o ser da mesa, o ser da cadeira, o ser do homem etc. Heidegger denomina diferença ontológica essa distinção entre ser e ente.

À luz dessa tese, Heidegger observa que o pensamento filosófico consolidado após Platão e Aristóteles, progressivamente desrespeitou essa diferença, “esqueceu o Ser”, tratando-o como ente, objetificando-o. Por exemplo, se me pergunto “o que é essa mesa?”, posso fazer um inventário de todos os seus predicados: é retangular, é de madeira, é marrom etc. Contudo, a soma desses predicados não é capaz de dar conta do que é esse “é” da mesa. O ser da mesa ultrapassa essa soma e, ao mesmo tempo, não é nenhum desses predicados. Por isso, Heidegger vale-se da construção alemã Es gibt  para indicar o Ser. No português corrente, traduzimos essa expressão por “há”. Es gibt etwas hier, por exemplo: “há algo aqui”. Mas, a rigor, a expressão alemã indica um “dá-se” (es é um pronome pessoal indefinido, análogo ao it inglês, e gibt é a conjugação da terceira pessoal do singular verbo geben, “dar”). Literalmente, portanto, es gibt significa: “algo se dá”. Assim, es gibt einen Tische, é, em português corrente, traduzido como “há uma mesa”. Mas, seguindo a indicação de Heidegger, seria preciso traduzir como “algo se dá uma mesa”. E o que seria esse algo? O Ser. O Ser dá-se uma mesa, isto é, torna-a presente, aqui, diante de mim, ao lado da parede etc. Pelo pensamento, eu acolho esse “dar-se” do ser.

Contudo, convém sublinhar: o ser heideggeriano não é a “coisa em si” inapreensível de Kant, o “Espírito” hegeliano, ou a “vontade de poder” de Nietzsche. Todas essas construções, para Heidegger, são indicativas da tentativa de tornar o ser um ente. As coisas não “escondem” nada atrás de suas aparições, como observa o mestre intelectual de Heidegger, Husserl, pai da fenomenologia. As coisas são o que são em sua aparição. O Ser é aquilo que torna as coisas presentes e se revela por essas coisas – é ser do ente –, ao mesmo tempo em que não se confunde com elas. Nesse sentido, o Ser não é, é Nada (Nichts).

Ora, é esse paradoxo que, na visão de Heidegger, os primeiros filósofos (os pré-socráticos, sobretudo, Parmênides e Heráclito) observaram e tentaram expressar em suas filosofias. Entretanto, a confusão oriunda da ambiguidade do termo ser (como verbo e como substantivo, como indicado no início), resultou no esquecimento do Ser. Assim, a distinção socrático-platônica entre o mundo sensível e o inteligível, a cadeia aristotélica de ser que culminava no “Primeiro motor”, o Deus tomista ou de Descartes, todas essas construções são indicativas daquele esquecimento, pois, nelas, o que se fez foi tomar o Ser como um objeto que servisse de Grund, solo, fundamento, ponto fixo a partir do qual o pensamento poderia se mover. Por isso, diz Heidegger, é preciso “destruir” toda a metafísica para recuperar o verdadeiro sentido do Ser.

Em grandes linhas, é esse agenciamento que ocupará o conjunto da reflexão heideggeriana. Nesse sentido, o que fundamentalmente distingue as duas grandes fases de seu pensamento é que, na primeira, o filósofo busca desvendar o sentido do ser por meio de uma investigação analítica do ente cujo modo de ser é, nele mesmo, uma indagação sobre o sentido do ser – o ser humano – ao passo que, na segunda, a reflexão é deslocada para a tentativa de desvelamento do Ser nele mesmo.

Expliquemos. Em Ser e tempo (Sein und Zeit), Heidegger assinala que o ser humano o único ente que pode questionar o ser. Para indicá-lo, porém, o autor rejeita o uso dos conceitos antropológicos tradicionais, bem como aqueles usualmente empregados pela tradição: eu, mente, espírito, alma etc. O ente que se coloca a questão sobre o Ser é Dasein, traduzido literalmente como “ser-aí”. Apenas Dasein pode compreender o Ser, indagar seu sentido. Como? Encontramo-nos no mundo cercados de coisas (isto é, de entes) que nos aparecem como estando “à nossa mão”. Dasein é o ente para o qual a totalidade dos entes aparece, para o qual um mundo. Dasein é ser-no-mundo (In-der-Welt-sein). Ao relacionarmo-nos com essas coisas, nos ocuparmos desse mundo e estabelecemos nossos possíveis. Através deles, isto é, da tentativa de realizá-los, podemos compreender nossa existência e, por conseguinte, o Ser. Por isso, a relação com o mundo é relação consigo mesmo e vice-versa. Para explicar essa relação, Heidegger a define como cuidado (Sorge). Nossa relação, a relação de Dasein com o mundo (e aí incluso si mesmo e os outros) é uma relação de cuidado.

Sem adentrar na “analítica existencial” de Ser e tempo (isto é, a explicitação das categorias através das quais é possível compreender Dasein) e seus temas palpitantes, como a angústia, a alienação e a morte, o que mais interessa aqui é demarcar uma segunda distinção capital, desta vez no plano dos entes (plano que Heidegger denomina ôntico). Todo ente, toda coisa, é. Apenas Dasein, o ser humano, existe. Existir é se fazer presente, em cada momento, “aí”, no mundo, em uma determinada situação. Heidegger nota que “existir” vem de ec-sistire, a partícula “ec” sinalizando um lançar-se no mundo, para frente, ser-fora-de-si-mesmo. Eis porque, para Dasein, fala-se em possibilidade – algo que não existe para os objetos em geral, que são o que são. Contudo, nem tudo é possível para a realidade humana. Ao existir, deparamo-nos, cada um de nós, com aquilo que Heidegger denomina de facticidade. Esta nada mais é do que o conjunto de circunstâncias que permite a cada indivíduo fazer determinadas projeções em detrimento de outras, alcançar certas realizações e não outras etc. Assim, como não é um dado inerte, a existência, para Heidegger, só pode ser pensada como uma interrogação permanente em torno dessa facticidade, desse lançar-se no mundo em busca de concretizar suas possibilidades. Portanto, Dasein ec-siste no tempo.

Por isso, o filósofo por vezes trata sua filosofia inicial como uma “fenomenologia hermenêutica”. Mas, diferentemente do emprego antigo do termo, a hermenêutica aqui não diz respeito à interpretação de textos, mas interpretação da própria existência e, através dela, do sentido do ser. O Ser, diz Heidegger, é aquilo que se revela em seu encobrir-se, aquilo que se encobre ao revelar-se. É abertura. Como a abertura entre as árvores numa floresta, que não é nem uma árvore em particular, nem seu conjunto, nem o solo, nem o céu etc., mas é aquilo pelo qual a floresta se apresenta. O ser é ele mesmo. Ser ele mesmo, é ser essa abertura, é Es gibt mencionado no início, e, portanto, é ser Nada. O Nada pelo qual as coisas positivamente podem ser, existir. O “dar-se” do ser é, enfim, temporal. Quer dizer, o tempo é a condição sem a qual não existe o ser, desde que este seja entendido a partir do ser do ente que se pergunta sobre o ser, isto é, a partir de Dasein, da realidade humana. Só no tempo é que Dasein se projeta, se ocupa e cuida do mundo e, com isso, pode trazer à luz esse mistério do Ser.

Na segunda fase de seu pensamento, Heidegger desloca sua atenção para apreender a “Verdade do Ser”. O ser, como dito, é um processo de ocultar-se e revelar-se. Por isso, sua verdade não pode ser pensada ao modo tradicional, como “convergência do pensamento e da coisa”, típico da metafísica a ser combatida. Afinal, o Ser não é coisa. Com efeito, a “verdade do Ser” é aletheia, termo grego que, em sentido literal, significa “não-esquecido” ou “descoberto”. A verdade do ser é anunciada pelo Ser. Por isso, o Ser é linguagem, e o ser humano é o guardião da verdade do Ser, o responsável por atender seu apelo e explicitá-la. É pela linguagem, não obstante suas limitações intrínsecas, sobretudo a poesia, que o Ser revela-se em seu próprio ocultamento.

Para além da tecnicidade do vocabulário heideggeriano, e de certo misticismo nele e nesse modo de tratar o Ser, há um desdobramento ético-político dos mais interessantes (nada a ver, sublinhe-se, com as relações do autor com o nazismo, o que é outra história) no modo como Heidegger lê a história da filosofia – ou seja, a formação da própria racionalidade ocidental – enquanto “esquecimento do ser”. Ele se encontra presente no entrecruzamento da “objetificação” do ser com o domínio da técnica na modernidade, o que conduz, no entender do filósofo, a uma existência alienada, inautêntica, típica de nossa era, e que tem importantes pontos de convergência com a tematização da alienação em Marx. Contudo, dada sua extensão, em breve tentarei dedicar outro post exclusivamente a essa questão.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Sobre nostalgia - ou os anos 1980

Sou da tese de que uma pessoa que se agarra demasiadamente ao passado, é porque não está satisfeita com seu presente ou, pior ainda, porque não vê boas expectativas com o futuro. De um ponto de vista crítico, filosófico, quando a nostalgia toma conta, há de sempre se perguntar se esse sentimento não tem como fermento oculto aquela desilusão ou se, pelo contrário, se trata de um (necessário) refresco para o espírito em nossa labuta diária.

Faço essa ressalva, porque a nostalgia pode surgir em momentos específicos – o que me parece ser algo completamente normal e mesmo saudável – e não ser um estado de espírito, sendo, assim, prejudicial. Eu, por exemplo, sou uma pessoa permeada, desde muito cedo, por arroubos nostálgicos. E admito que tenho, por vezes, de me equilibrar entre ser dominado por um mergulho afetivo que arrisca um desprendimento do presente – a sensação de deslocamento, de ter nascido na época errada –, e aquela boa nostalgia, que ajuda restaurar a mente e ajuda a iluminar a trajetória da existência de cada um. Ainda no meu caso, a combinação entre estrada, direção, música e a mente um pouco vazia, é catalisadora daquela nostalgia latente. Foi num desses momentos, aliás, que a ideia desse arremedo de crônica começou a surgir.

Em boa parte das vezes, meu sentimento de nostalgia se volta para a tenra infância, o que significa, para alguém nascido em 1985, o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990. Não por acaso, portanto, aquela que, para muitos, é a “década perdida”, para mim assume um colorido todo especial – e único. E é também um pouco sobre ela que desejo falar.

Para os efeitos desse texto, me permito violar o calendário, e considerar que a década de 1980 se estende, aproximadamente, até o ano de 1992, 1993. Permito-me essa alteração, porque entendo que é nesse momento que seus ecos econômicos, políticos, culturais, estéticos etc. definitivamente se encerram, dando voz a um novo período que, de algum modo, se estende até hoje.

Não pretendo aqui fazer um balanço daquela década, mas, para não perder o veio filosófico, convém fazer uma brevíssima contextualização, inclusive para compreender a contradição entre aquilo que, em termos emprestados de Hegel, pode-se chamar de “espírito objetivo” de uma época e o “espírito subjetivo”, isto é, a vivência individual daquele momento (que, imagino, se assemelhará a de muitos leitores desse texto que viveram aquele período).

Do ponto de vista mundial, os anos de 1980 são considerados a “década perdida”, sobretudo por conta dos reveses econômicos globais. Mais importante, no entanto, é o fato de que, nesse decênio, uma nova visão de mundo começa a se consolidar, estabelecendo-se em definitivo a partir de 1992, 1993, como disse anteriormente, o que coincide com o fim da Guerra Fria, isto é, com o colapso da União Soviética e o triunfo definitivo do capitalismo, do liberalismo e do american way of life. Na economia, essa nova visão recebe o nome de “neoliberalismo”. Em termos culturais, fala-se de “pós-modernismo”. Na política, prefere-se “nova ordem” ou “globalização”. Não importa propriamente a denominação, já que se trata de facetas de um mesmo processo, de determinação de uma nova forma de enxergar o mundo, uma nova racionalidade, que acompanha o rearranjo fo capitalismo global. Nela, se privilegia, como nunca antes, o individualismo, a aparência, o prazer instantâneo etc., em detrimento do coletivo, da permanência, da duração. A superficialidade de grande parte da arte nesse período, por exemplo, é uma ilustração dessa mudança (basta ver as músicas mais executadas, ou os filmes mais assistidos, e comparar, por exemplo, com os anos 1970).

Não que tudo o que ocorreu naquela década se explique por esses fatores. Isso seria cair na perigosa armadilha do determinismo que, querendo explicar tudo a partir de um único fator, acaba não explicando nada. Mas, em linhas gerais, as observações acima ajudam a delimitar minimamente o cenário.

Cena do filme Curtindo a vida adoidado
No entanto, para quem, de algum modo, viveu aquele período, recebeu suas influências e carrega, ainda que inconscientemente, suas marcas, as coisas são ainda mais complexas, pois atravessadas por sentimentos e lembranças. Não é preciso apelar à psicanálise para saber o quanto as experiências da primeira infância são decisivas para os rumos que nossa vida tomará. Basta um autoexame sincero para constatá-lo.

Por exemplo: a aludida “superficialidade” da arte – pelo menos, da indústria cultural. Curtindo a vida adoidado, De volta para o futuro ou Clube dos cinco, são filmes paradigmáticos do espírito dos anos 1980. Por trás do entretenimento, acredito que o sucesso dessas películas é inseparável da percepção de uma juventude em conflito, num momento de transição de valores, cada vez mais ensimesmada em sua vida particular, instigada a fugir da realidade, posto que o presente apontava para um futuro repleto de incertezas (diferente do que ocorrera com a geração anterior). De algum modo, portanto, esses filmes são (também) ilustrações, provavelmente sem o desejarem, de uma ideologia em gestação. Mas, experimente dizer isso para quem assistia esses filmes nas Sessões da tarde ou nos Cinema em casa da vida...

Aliás, ainda nesse âmbito artístico, citei mais acima a música como uma via de entrada para nostalgia, porque é especialmente através dela que eu me volto para aquele período. Claro que programas de TV, personagens, ou brinquedos e objetos em geral, têm esse poder de remissão. Muitas das coisas do vídeo abaixo me conduzem diretamente a 1989, 1990... Mas, o caso da música é diferente.

O grupo A-ha, no clipe de "You are the one"
Desde quando comecei a definir meu gosto musical (já na segunda metade dos 90), sempre tive a impressão de que certas canções ou artistas me transportavam para meus primeiros anos de vida, como na experiência da madeleine do personagem principal do romance de Marcel Proust, No caminho de Swann. Claro que isso se dava porque muitas delas eram realmente daquela época – o rock nacional, depois o hard rock/glam metal e o pop –, e exprimiam, a seu modo, o “espírito” dos 80. Mas não era – e não é – só isso. Na verdade, sinto como se as tivesse ouvido em algum momento – no rádio, na TV – e as registrado vagamente em minha memória. Assim, cada nova audição parece como uma tentativa de recuperar a experiência original. Primeira vez que, em alguns casos, houve mesmo, sobretudo ligadas a artistas voltados para o público infantil (Xuxa, Mara Maravilha, Balão Mágico etc.), mas que, em outros, já não é tão certo, pois meus pais não eram fãs de música internacional, embora tivéssemos alguns LPs e K7s em casa.

Um exemplo que me vem de pronto à mente: “You are the one”, do A-Ha. A primeira vez que ouvi essa música, digamos, conscientemente, me senti lidando com uma velha conhecida. Provavelmente já era mesmo, posto que ela fez bastante sucesso, e a banda tocava muito por aqui. Mas, até hoje, tenho a sensação de que a escutei inicialmente em um bom momento da infância – talvez brincando, ou no colo da minha mãe. Outras tantas músicas, principalmente de hard rock, têm o mesmo efeito, ainda que, possivelmente, não as tenha escutado quando criança. Vai entender...

Silvio Santos e os jurados do "Show de calouros"
Outro caso curioso ocorreu há alguns anos, quando estava morando em Paris. Logo nos primeiros dias, no metrô, alguém entrou no vagão para tocar violino em troca de alguns trocados. Logo nos primeiros acordes, comecei a cantarolar junto, bem baixinho o que ouvia. Tratava-se de uma canção folclórica russa (dado que descobri depois), que ainda ouviria outras tantas vezes, sempre na mesma situação. Para mim, porém, ela representava outra coisa: era a música de abertura do Show de calouros, famoso programa comandado por Silvio Santos e que, claro, assistia quando criança. Durante a execução, viajei para minha antiga casa, sem sair do lugar. Desnecessário dizer que, naquele dia, fui ao Youtube (um privilégio de nossa época!) para rever aquela abertura...

Exemplos assim poderiam ser multiplicados. Mas, mas como a lida cotidiana não perdoa, e esse texto já ficou maior do que eu imaginava, é hora de voltar a 2016. Em outro momento, quem sabe, uma nova divagação desse tipo possa surgir. Afinal, desde que não sejamos tomados por ela, um pouco de nostalgia pode ser um verdadeiro elixir para a alma! 

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Trocam-se os burros...

A tardia chegada de Tite ao comando da seleção brasileira equaciona minimamente uma enorme injustiça cometida em 2014. Minimamente porque, antes de qualquer coisa, o ex-treinador corintiano terá a inglória tarefa de tentar recuperar os dois anos perdidos sob o “comando” de Dunga (como se já não bastassem as sequelas deixadas pelo desastre Felipão).

Em que pese esse passivo, contudo, não tenho muitas dúvidas de que, com Tite, o Brasil deverá se classificar sem maiores sustos para o mundial da Rússia em 2018. Ainda que, vale desde já registrar, com um futebol que provavelmente decepcionará quem, como eu, acha que a seleção, enquanto patrimônio cultural de nosso país, deveria sempre ter como meta jogar um futebol vistoso – e não se preocupar com o resultado, pura e simplesmente. Mas, reconheço: na atual situação, essa discussão fica em segundo plano.

Nesse sentido, aliás, também é sempre de bom tom frisar o mais importante: conquanto a correta troca de Dunga por Tite deva resolver as questões de campo da seleção, no cômputo geral, ela representa apenas a troca dos burros. A carroça CBF, atolada em seu mar de corrupção e incompetência, permanece a mesma. E é nela que estão guardados os maiores problemas do futebol brasileiro.

domingo, 29 de maio de 2016

Vivemos um "estado de exceção"? Considerações a partir de Agamben

Uma das pautas que se impõe atualmente na política brasileira, intensificada após o afastamento da presidenta Dilma, é a de que estaríamos vivendo em um “estado de exceção”, no qual direitos e garantias constitucionais estariam sendo aplicados (ou não) de forma discriminatória. Para ajudar nessa discussão, é útil recuperar a tematização proposta pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, que deu novo fôlego na contemporaneidade no tratamento da exceção.

Publicado em 2003, na esteira das primeiras movimentações do governo norte-americano após 11 de setembro, Estado de exceção se inscreve na perspectiva do projeto  de setembro, Homo sacer, iniciado na década de 1990, no qual se trata de rediscutir a biopolítica de Michel Foucault através de um cruzamento original dos pensamentos de Hannah Arendt e da Escola de Frankfurt (notadamente, Walter Benjamin). Como ponto de partida, Agamben adota a ideia do Direito como mecanismo que defende e ameaça a vida concomitantemente. Em Estado de exceção, particularmente, trata-se de reconstruir o conceito jurídico-político que dá título à obra, definindo o estado de exceção como uma zona de indistinção que está simultaneamente dentro e fora do direito. A vida humana, neste caso, é capturada como mera “vida nua”. Ou seja, na suspensão do direito, a vida fica desprotegida como pura vida natural, não pertencendo mais às pessoas, mas à vontade, ao arbítrio do soberano, que tem o poder de suspender os direitos e, como consequência, a ordem jurídica.

Aqui, Agamben recupera um debate conceitual entre Carl Schmitt, jurista alemão partidário do nazismo, e Walter Benjamin – cuja morte se deveu exatamente à perseguição nazista aos judeus. Para Schmitt é o soberano quem decide sobre o estado de exceção, na medida em que se encontra incluído no direito a sua própria suspensão. Ou seja, o estado de exceção se inscreve no contexto jurídico, conquanto sua efetivação implique na “suspensão de toda ordem jurídica”. Nas palavras de Schmitt, “o estado de exceção é sempre algo diferente da anarquia e do caos e, no sentido jurídico, nele ainda existe uma ordem, mesmo não sendo uma ordem jurídica”.

Benjamin, por seu turno, inverte a concepção de Schmitt. Não se trata de uma decisão do soberano aplicá-lo, mas evitá-lo, pois, segundo o autor, “quem reina já está desde o início destinado a exercer poderes ditatoriais num estado de exceção, quando este é provocado por guerras, revoltas ou outras catástrofes”. Nesse sentido, cumpre relembrar a VIII tese sobre a história, escrita em 1940 – que será importante para o entendimento de Agamben – na qual Benjamin proclama: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerando como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável”.

Para Agamben, o estado de exceção é uma zona de indistinção, ou seja, não é nem exterior, nem interior ao ordenamento jurídico. Assim, o problema de sua definição encontra-se, justamente, em uma esfera de indiferença em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam. Destarte, suspender a norma não implica em sua anulação, ao passo que a zona de anomia, indeterminação, não é destituída de relação com a ordem jurídica.

Com efeito, o estado de exceção é um vazio de direito porque é um “espaço anômico onde o que está em jogo é uma força-de-lei sem lei”, portanto, força-de-lei. Trata-se, segundo Agamben, de “um estado da lei em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem força) e, em que de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua força é essa indefinibilidade e a esse não-lugar que responde a ideia de uma força-de-lei. [...] a força-de-lei, separada da lei, o imperium flutuante, a vigência sem aplicação e a ideia de uma espécie de ‘grau zero’, são algumas das tantas ficções por meio das quais o direito tenta incluir em si sua própria ausência e apropriar-se do estado de exceção, ou, no mínimo, assegurar-se uma relação com ele Assim, consequentemente, o estado de exceção se configura como um espaço de indistinção que conjuga o vazio de direito no espaço anômico, como um vazio e uma interrupção do direito. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, uma zona de indiferença capturada pela norma, de modo que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se, dá lugar à exceção”.

Em outras palavras, o estado de exceção é “a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força-de-lei (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referencia real”.

Recuperando a intuição de Walter Benjamin, Agamben defende que o estado de exceção, enquanto paradigma de governo, tem se tornado regra nas instituições políticas contemporâneas. Nesse sentido, o filósofo assinala o paradoxo da soberania (a exceção como regra), o investimento na vida pelo poder (o biopoder), e a falsa universalidade do projeto moderno (principalmente com relação aos diretos humanos e à liberdade). A partir dessas considerações, Agamben visa entender o movimento que leva a excepcionalidade como um mecanismo de suspensão da ordem jurídica tornar-se um paradigma de governo eminentemente presente na política contemporânea – inclusive nas democracias mais avançadas.

Assim, diante da necessidade de responder a uma situação de emergência qualquer (política, militar, econômica), os governos (mesmo os democráticos) adotam uma série de medidas de cunho totalitário, sob a justificativa de que tais medidas serviriam para proteger o Estado e suas instituições. Por conseguinte, estes argumentos confeririam caráter jurídico às situações não contempladas ou sequer previstas pela normalidade constitucional.

À luz dessas considerações, é possível afirmar que o Brasil vive um estado de exceção? Creio que a resposta seja: parcialmente, sim. Afinal, se não vivemos um momento de suspensão completa do direito, das garantias individuais etc., há em curso um processo que, a meu ver, atesta a legitimidade daquela hipótese.

É preciso esclarecer: para além de quaisquer julgamentos acerca da política econômica ou outras decisões tomadas pelo governo Dilma, houve, nos últimos anos, um fator de desestabilização da ordem política brasileira, a Operação Lava Jato, a partir da qual aquele estado de exceção começou a se desenhar. Ora, como os áudios divulgados nos últimos dias reforçam, essa tem sido a grande preocupação da classe política nacional, de um espectro a outro. Mas, vale lembrar que, inicialmente, a Lava Jato estava claramente destinada a enfraquecer ou mesmo extinguir um grupo político específico – basta ver sua circunscrição aos governos petistas, quando se sabe tratar-se de um problema muito mais antigo, o que já é um prenúncio de um estado de exceção. Contudo, a partir de certa altura, ela parece ter saído do controle, exigindo uma intervenção direta do centro do poder para sua detenção. Diante da recusa de Dilma em participar – ao menos, no grau esperado – desse conluio, a solução foi aplicar a ela o processo de impeachment, sob qualquer pretexto minimamente contemplado no texto constitucional (exatamente para que não se configurasse a ideia de golpe e, portanto, de excepcionalidade). A partir desse momento, o que se tem é a propagação de ideias e movimentos destinados a criar um contexto de insegurança jurídica e intensificação de perseguições (especialmente pelo mau uso do mecanismo de delação premiada), com o intuito de reverter os estragos políticos das investigações em curso, redimensionando-as à esfera previamente estabelecida, isto é, o governo Dilma, Lula e o PT.

Diante disso, cabe indagar: será possível retornar a esse status quo ante? Pessoalmente, duvido. A percepção de que o desenrolar do presente nos encaminha  para um estado de exceção pleno – no qual o arbítrio extrapole ainda mais os atuais limites, ainda que sob roupagem “democrática” – é cada vez mais nítida. E a própria dinâmica da realidade parece se opor – e se impor – àqueles que desejavam apenas “acabar com a raça da esquerda”.


quarta-feira, 18 de maio de 2016

Muito pior do que a encomenda

Menos de uma semana, e o governo golpista de Michel Temer já mostrou a que veio. A escolha de um ministério exclusivamente masculino, no qual não há lugar para pastas como a Cultura ou os Direitos Humanos, e, de quebra, com sete (!!!) investigados na Lava Jato foi apenas o tenebroso cartão de visitas. Da última sexta-feira para cá, uma série de declarações do primeiro escalão do novo governo, somadas às suas primeiras ações, estão (ou deveriam estar) aterrorizando todos aqueles que minimamente conscientes e preocupados com o futuro do país.

Os temas até aqui elencados foram variados e extremamente sensíveis: pauta extensa de privatizações; Reforma da Previdência com elevada idade mínima para se aposentar; diminuição do SUS; apoio ao pagamento de mensalidade em Pós-Graduação das universidades públicas; revisão de programas sociais (“Minha Casa, Minha Vida” e “Bolsa Família”); política repressiva em relação aos movimentos sociais; postura agressiva em relação aos países do “Eixo Sul” e de submissão aos EUA e à EU; dentre outros. A síntese da nova política pode ser encontrada nas afirmações dos novos Ministros da Fazenda e da Justiça, a saber: “direito adquirido é um conceito relativo”, e “nenhum direito é absoluto”, respectivamente.

Com efeito, o pano de fundo de ambas as declarações demarca o fio condutor da política de Temer: opor direitos sociais constitucionalmente assegurados à (suposta) necessidade de um severo ajuste fiscal para reequilibrar o orçamento e “acalmar os mercados”. É isso que nos aguarda. Uma política de desmonte da Constituição que, admito, está sendo exposta em ritmo mais rápido que imaginava. A cada manhã, a cada acesso à internet ou a cada edição dos telejornais, uma nova desagradável surpresa. “Ordem e progresso” é, pelo seu anacronismo e reacionarismo, o lema perfeito para este governo.

Contudo, ainda não parece possível afirmar que Temer terá condições de implementar seu plano até o fim. Não apenas pelo tempo escasso (ainda que fique até 2018), ou por dissensos em sua base, mas, sobretudo porque, não obstante a tentativa de desmoralização da esquerda que culminou no afastamento provisório da presidenta Dilma, a resistência ao golpe permanece – e pode se fortalecer. E, mais importante, não apenas por parte do núcleo de sustentação ao antigo governo. Alguns apoiadores do golpe, por exemplo, já começaram a manifestar preocupações públicas com os primeiros gestos do governo Temerário. E, claro, há também a possibilidade de uma parte mais expressiva da população que, mesmo crítica ao PT e a Dilma, é dependente do bom funcionamento do Estado, se insurgir quando se perceber vítima da manipulação grosseira à qual foi submetida. A ver. E a persistir na luta.