quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Sobre a contingência


Há pelo menos duas grandes orientações filosóficas do estudo da contingência que se conflitaram no século XX. A primeira, da qual podemos imputar seu delineamento a Sartre, tem o objetivo de contrapor às teorias cientificistas e positivistas que previam maior ou menor grau de determinação do indivíduo, uma teoria da liberdade. Na filosofia sartriana, por exemplo, dizer que o existente é contingente é a contrapartida da noção de que ser humano é igual a ser livre. E a liberdade, para Sartre, só faz sentido enquanto imperativo para a ação. Porque, no homem, a existência precede a essência, o ser humano é aquilo que ele se faz. Mas, o que ele fará de si não está determinado por nenhuma instância a priori. Assim, a tomada consciência do caráter contingente de nossa existência, ao mesmo tempo em que provoca “náuseas” devido à perda de nossas referências e de nossa estabilidade – como em Antoine Roquentin, personagem principal do romance sartriano A náusea –, é também o que nos chama a agir, a criar nosso mundo, nossa história e nós mesmos. É a senha, enfim, para a busca de algum sentido cujo horizonte, longe de estar pré-determinado, é desenhado por nós mesmos, inclusive em termos sociais.

Por outro lado, em alguma medida radicalizando essa posição expressa por Sartre, mas subvertendo-o negativamente, o discurso pós-moderno, fortemente inspirado pela filosofia pós-estruturalista, faz da contingência o traço distintivo de toda a realidade. No entanto, transmuta o caráter ativo da primeira orientação numa celebração frívola da efemeridade e da volatilidade da experiência. Porque nada é necessário, ou melhor, porque a própria oposição entre necessidade e contingência é compreendida como uma questão presa aos ditames de uma “racionalidade monológica” (a Razão moderna), o discurso pós-moderno desloca o caráter positivo que decorre daquela noção de contingência em nome de uma suposta volubilidade das verdades, de uma liquefação da vida. Desconhecedor de qualquer sentido de continuidade, festeja um tempo que se esgota no presente vivido, no instante fugaz, na adesão à descontinuidade, na afirmação de um aqui-agora sem profundidade. Nesses termos, do caráter contingente da realidade, a concepção pós-moderna, apesar do discurso à primeira vista atraente, conduz à afirmação mais ou menos implícita da inutilidade das ações coletivas (sobretudo aquelas de maior envergadura, mais “utópicas”), porque forçosamente incapazes de contornar (logo, diferentemente do que a concepção de Sartre previa) o caráter gratuito da realidade, isto é, de conferir-lhe algum sentido. No limite, portanto, à apatia e à assunção do niilismo. Não surpreende, assim, que esse discurso sirva de substrato ideológico da fase contemporânea do capitalismo.

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