Quadro do pintor expressionista Ernst Kirchner |
Um dos conceitos mais ricos do
universo filosófico do sartriano é o de angústia.
No existencialismo de Sartre, a angústia não é apenas mais um sentimento de
ordem psicológica, mas é a experiência existencial que desvela nossa liberdade
ontológica. Isso significa que, se como diz o filósofo, ser humano e ser livre
são a mesma coisa, é a angústia que positivamente revela, a cada escolha que fazemos, a cada
decisão que tomamos, essa liberdade radical que nos caracteriza.
Para Sartre, com efeito, a
liberdade demonstra que não há fundamentos a
priori, eternos, imutáveis ou transcendentais para nossos valores e nossas
determinações. A rigor, todo o mundo humano é obra nossa e, portanto, assentado
naquilo que escolhemos. Tomando um exemplo bastante simples: o despertador toca
pela manhã, indicando que devo me levantar e me arrumar para ir para o trabalho
ou para a faculdade. À primeira vista, essa situação parece denotar uma simples
e corriqueira obrigação. Não haveria aí margem de escolha possível (ao menos,
para a maioria das pessoas). Ou seja, mesmo que não queiramos encarar o dia de
serviço ou de aulas, que tenhamos dormido mal à noite etc., vemo-nos forçados a
atender o “chamado” do despertador. No entanto, de acordo com o pensamento de
Sartre, levantar ou ficar na cama por mais alguns minutos, ou horas; ir ao
trabalho no horário correto ou chegar atrasado etc.; são escolhas nossas – e exclusivamente nossas. Quer dizer, sou
eu quem dou ao toque do despertador (e ao próprio fato de acioná-lo na noite
anterior) o sentido de uma obrigação: me levantar, me arrumar e ir trabalhar. De
fato, segundo o filósofo francês, não há nada a priori que exija de mim o cumprimento deste ritual; sou eu quem me
imponho essas atividades como obrigações, e as repito diariamente.
Se é assim, eu poderia,
simplesmente, me negar a levantar e continuar dormindo. Naturalmente, essa
atitude – como, de resto, qualquer outra – teria consequências. Poderia receber
uma sanção ou perder o emprego, ser reprovado em uma disciplina ou não me
formar etc. Mas, o mais grave é que seria eu o único responsável por carregar o eventual peso destes possíveis
desdobramentos. Ora, mas ser livre, segundo Sartre, é justamente isso: escolher
e ser responsável por suas escolhas. Seguindo o mesmo exemplo: poderia optar
abandonar meu emprego e procurar outro no qual não precisasse levantar cedo
todas as manhãs; ou abandonar a faculdade e por aí vai.
No entanto, o leitor poderia
retrucar que, na realidade, adotar uma ou outra alternativa não é uma tarefa assim
tão fácil (não é tão simples, por exemplo, largar um emprego ou um curso
universitário). Ocorre que, para a filosofia sartriana, também somos nós quem estabelecemos
os referenciais a partir do qual valoramos a nossa vida (e instituímos nosso
“projeto existencial”). Somos nós quem criamos nossos valores, nossas
significações e as hierarquias de sentido a partir das quais uma determinada
escolha se torna difícil ou simples, dolorosa ou razoável. Logo, uma decisão
que, para mim, seria ousada ou quase inimaginável, pode ser muito menos
problemática para outra pessoa, e vice-versa, de acordo com os valores livremente
adotados por mim ou por ela.
E é nesta equação que surge a
angústia: ela é justamente a apreensão da impossibilidade de transferirmos a
outrem, ou a qualquer outro ente, a responsabilidade daquilo que escolhemos (valores,
decisões) e das consequências dessa escolha. Ou seja, ela é a manifestação
(dramática, é verdade) de nossa liberdade. Se aceito que devo me levantar pela
manhã para trabalhar, ou estudar; ou se rejeito essas obrigações, sou apenas eu
– e mais nada, nem ninguém – o responsável pela alternativa adotada. Querer
reputá-la a outra pessoa, a uma situação externa qualquer é, nos dizeres de
Sartre, agir de má-fé, é querer negar-se
ser o que se é: livre.
Sempre segundo o filósofo, essa
possibilidade se faz presente em quase todos os momentos de nossa vida. No
limite, nenhuma situação, nenhuma relação com outras pessoas – sejam elas boas
ou ruins, promotoras de felicidade ou fonte de tristeza e sofrimento – começa
ou se prolonga se nós assim não o desejarmos. Somos sempre livres para mudar os
rumos de nossa vida, construir nossa existência. No entanto, é preciso
insistir: também devemos saber que não há a quem responsabilizar pelas
repercussões das decisões que tomamos. Podemos escolher, mas seremos sempre “culpados”
por essas escolhas – quando elas derem certo, ou quando derem errado, de acordo
com o que intencionávamos. Por isso, nos angustiamos.
Na filosofia de Sartre, portanto,
a angústia é a expressão máxima da inteira responsabilidade pelo rumo que damos
a nossa vida. Escolhemos sós e sem desculpas; por isso, somos tomados desse
sentimento quando nos vemos obrigados a por em prática essa liberdade.
Finalmente, pode-se criticar – e não sem razão, diga-se – a ideia de liberdade radical de Sartre. Ela talvez simplifique algo que, na vida real, concreta, talvez não seja tão simples como pode parecer. Afinal, nem sempre (ou, na verdade, nunca), a liberdade de que dispomos é assim tão absoluta. Ainda assim, a força da tese de que a angústia está intrinsecamente ligada à possibilidade de escolha que é, em última instância, uma escolha desamparada, logo, de responsabilidade nossa – inclusive quando as opções não são aquelas que desejamos – se revela a qualquer um que se encontre diante do dilema de qual caminho seguir – e só possa resolvê-lo sem encontrar apoio em mais nada, senão em si mesmo.
Este é o segyndo texto seu que eu leio e ambos falavam slbre o mesmo filósofo Sartre, sem dúvidas que me não só sua forma de escrever me encantaram como Sartre também, admito ter uma certa dificuldade com textos mais profundos, a linguagem ainda me causa problemas... Entretanto, gostaria que me indicasse alguns textos, de preferência gostaria a princípio de comentadores e quando já estiver mais acentuada do assunto recorrerei as obras do próprio filósofo.
ResponderExcluirDesde já eu agradeço!
Oi Suzana,
ExcluirObrigado pela leitura! Como comentadores, sugiro: Gerd Bornheim. " Sartrre - metafísica e existencialismo", especialmente a primeira parte. Também "Sartre - existencialismo e liberdade", de Luiz Damon dos Santos Moutinho.
Tem um texto do próprio Sartre, que é uma conferência, intitulado "O existencialismo é um humanismo", que é bem tranquilo.
Acho que, pra início, é isso.
Qualquer coisa, volte a escrever.
Abraço
Boa, Vinícius. Também aprecio muito Sartre e essas questões da liberdade angustiante (risos). Li a trilogia 'Caminhos da liberdade' dele. Especialmente o segundo livro da série (Sursis) em que ele fica na angústia de servir na guerra é fantástico. Uma verdadeira tensão existencial. O próprio título do livro já diz tudo: suspensão. Nossa vida parece mesmo ficar meio suspensa quando esperamos algo importante. A tal ansiedade, hahahaha. Abraço, Piero,
ResponderExcluirLegal. Texto lucido e cadenciado. Você escreve com a métrica do Prof. CLOVIS. Enquanto lia você, parecia estar ouvindo ele. E isso é certamente um elogio de minha parte. Abs
ResponderExcluirObrigado, Isabela!
ExcluirAbraço
oii! ótimo texto! mas como estou escrevendo meu tcc, gostaria de saber as referencias deste texto maravilho! grata
ResponderExcluirMuito obrigado! O texto foi baseado em "O ser e o nada" e "O existencialismo é um humanismo"
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