segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Angústia e liberdade em Sartre

Quadro do pintor expressionista Ernst Kirchner
Um dos conceitos mais ricos do universo filosófico do sartriano é o de angústia. No existencialismo de Sartre, a angústia não é apenas mais um sentimento de ordem psicológica, mas é a experiência existencial que desvela nossa liberdade ontológica. Isso significa que, se como diz o filósofo, ser humano e ser livre são a mesma coisa, é a angústia que positivamente revela, a cada escolha que fazemos, a cada decisão que tomamos, essa liberdade radical que nos caracteriza.

Para Sartre, com efeito, a liberdade demonstra que não há fundamentos a priori, eternos, imutáveis ou transcendentais para nossos valores e nossas determinações. A rigor, todo o mundo humano é obra nossa e, portanto, assentado naquilo que escolhemos. Tomando um exemplo bastante simples: o despertador toca pela manhã, indicando que devo me levantar e me arrumar para ir para o trabalho ou para a faculdade. À primeira vista, essa situação parece denotar uma simples e corriqueira obrigação. Não haveria aí margem de escolha possível (ao menos, para a maioria das pessoas). Ou seja, mesmo que não queiramos encarar o dia de serviço ou de aulas, que tenhamos dormido mal à noite etc., vemo-nos forçados a atender o “chamado” do despertador. No entanto, de acordo com o pensamento de Sartre, levantar ou ficar na cama por mais alguns minutos, ou horas; ir ao trabalho no horário correto ou chegar atrasado etc.; são escolhas nossas – e exclusivamente nossas. Quer dizer, sou eu quem dou ao toque do despertador (e ao próprio fato de acioná-lo na noite anterior) o sentido de uma obrigação: me levantar, me arrumar e ir trabalhar. De fato, segundo o filósofo francês, não há nada a priori que exija de mim o cumprimento deste ritual; sou eu quem me imponho essas atividades como obrigações, e as repito diariamente.

Se é assim, eu poderia, simplesmente, me negar a levantar e continuar dormindo. Naturalmente, essa atitude – como, de resto, qualquer outra – teria consequências. Poderia receber uma sanção ou perder o emprego, ser reprovado em uma disciplina ou não me formar etc. Mas, o mais grave é que seria eu o único responsável por carregar o eventual peso destes possíveis desdobramentos. Ora, mas ser livre, segundo Sartre, é justamente isso: escolher e ser responsável por suas escolhas. Seguindo o mesmo exemplo: poderia optar abandonar meu emprego e procurar outro no qual não precisasse levantar cedo todas as manhãs; ou abandonar a faculdade e por aí vai.

No entanto, o leitor poderia retrucar que, na realidade, adotar uma ou outra alternativa não é uma tarefa assim tão fácil (não é tão simples, por exemplo, largar um emprego ou um curso universitário). Ocorre que, para a filosofia sartriana, também somos nós quem estabelecemos os referenciais a partir do qual valoramos a nossa vida (e instituímos nosso “projeto existencial”). Somos nós quem criamos nossos valores, nossas significações e as hierarquias de sentido a partir das quais uma determinada escolha se torna difícil ou simples, dolorosa ou razoável. Logo, uma decisão que, para mim, seria ousada ou quase inimaginável, pode ser muito menos problemática para outra pessoa, e vice-versa, de acordo com os valores livremente adotados por mim ou por ela.

E é nesta equação que surge a angústia: ela é justamente a apreensão da impossibilidade de transferirmos a outrem, ou a qualquer outro ente, a responsabilidade daquilo que escolhemos (valores, decisões) e das consequências dessa escolha. Ou seja, ela é a manifestação (dramática, é verdade) de nossa liberdade. Se aceito que devo me levantar pela manhã para trabalhar, ou estudar; ou se rejeito essas obrigações, sou apenas eu – e mais nada, nem ninguém – o responsável pela alternativa adotada. Querer reputá-la a outra pessoa, a uma situação externa qualquer é, nos dizeres de Sartre, agir de má-fé, é querer negar-se ser o que se é: livre.

Sempre segundo o filósofo, essa possibilidade se faz presente em quase todos os momentos de nossa vida. No limite, nenhuma situação, nenhuma relação com outras pessoas – sejam elas boas ou ruins, promotoras de felicidade ou fonte de tristeza e sofrimento – começa ou se prolonga se nós assim não o desejarmos. Somos sempre livres para mudar os rumos de nossa vida, construir nossa existência. No entanto, é preciso insistir: também devemos saber que não há a quem responsabilizar pelas repercussões das decisões que tomamos. Podemos escolher, mas seremos sempre “culpados” por essas escolhas – quando elas derem certo, ou quando derem errado, de acordo com o que intencionávamos. Por isso, nos angustiamos.

Na filosofia de Sartre, portanto, a angústia é a expressão máxima da inteira responsabilidade pelo rumo que damos a nossa vida. Escolhemos sós e sem desculpas; por isso, somos tomados desse sentimento quando nos vemos obrigados a por em prática essa liberdade.

Finalmente, pode-se criticar – e não sem razão, diga-se – a ideia de liberdade radical de Sartre. Ela talvez simplifique algo que, na vida real, concreta, talvez não seja tão simples como pode parecer. Afinal, nem sempre (ou, na verdade, nunca), a liberdade de que dispomos é assim tão absoluta. Ainda assim, a força da tese de que a angústia está intrinsecamente ligada à possibilidade de escolha que é, em última instância, uma escolha desamparada, logo, de responsabilidade nossa – inclusive quando as opções não são aquelas que desejamos – se revela a qualquer um que se encontre diante do dilema de qual caminho seguir – e só possa resolvê-lo sem encontrar apoio em mais nada, senão em si mesmo.

7 comentários:

  1. Este é o segyndo texto seu que eu leio e ambos falavam slbre o mesmo filósofo Sartre, sem dúvidas que me não só sua forma de escrever me encantaram como Sartre também, admito ter uma certa dificuldade com textos mais profundos, a linguagem ainda me causa problemas... Entretanto, gostaria que me indicasse alguns textos, de preferência gostaria a princípio de comentadores e quando já estiver mais acentuada do assunto recorrerei as obras do próprio filósofo.

    Desde já eu agradeço!

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    1. Oi Suzana,

      Obrigado pela leitura! Como comentadores, sugiro: Gerd Bornheim. " Sartrre - metafísica e existencialismo", especialmente a primeira parte. Também "Sartre - existencialismo e liberdade", de Luiz Damon dos Santos Moutinho.
      Tem um texto do próprio Sartre, que é uma conferência, intitulado "O existencialismo é um humanismo", que é bem tranquilo.
      Acho que, pra início, é isso.
      Qualquer coisa, volte a escrever.
      Abraço

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  2. Boa, Vinícius. Também aprecio muito Sartre e essas questões da liberdade angustiante (risos). Li a trilogia 'Caminhos da liberdade' dele. Especialmente o segundo livro da série (Sursis) em que ele fica na angústia de servir na guerra é fantástico. Uma verdadeira tensão existencial. O próprio título do livro já diz tudo: suspensão. Nossa vida parece mesmo ficar meio suspensa quando esperamos algo importante. A tal ansiedade, hahahaha. Abraço, Piero,

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  3. Legal. Texto lucido e cadenciado. Você escreve com a métrica do Prof. CLOVIS. Enquanto lia você, parecia estar ouvindo ele. E isso é certamente um elogio de minha parte. Abs

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  4. oii! ótimo texto! mas como estou escrevendo meu tcc, gostaria de saber as referencias deste texto maravilho! grata

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    1. Muito obrigado! O texto foi baseado em "O ser e o nada" e "O existencialismo é um humanismo"

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