quinta-feira, 2 de julho de 2015

Redução da maioridade penal: vitória da "desrazão"

Um dos ideais mais nobres da modernidade iluminista era a concretização de uma sociedade inteiramente governada pela Razão, ou seja, formada por indivíduos emancipados, respeitadora das liberdades e promotora da paz. O projeto da “paz perpétua” kantiana, com tudo o que o cerca e o precede, talvez marque o ápice dessa confiança irrestrita no progresso de nossa racionalidade. Infelizmente, como se sabe, essa promessa não se cumpriu – as guerras mundiais do século XX, os campos de concentração, a ampliação da pobreza etc. foram alguns dos exemplos flagrantes de que a História era muito mais “astuta”, e bem menos progressivamente linear, do que aqueles pensadores poderiam conceber.

Entretanto, a perspectiva de uma sociedade racionalmente organizada não se perdeu por completo. Pelo contrário, diria que ainda está por realizar-se. É verdade que, rigorosamente falando, como lembrava Marx, é impossível uma sociedade racional positivamente organizada – ou seja, uma sociedade democraticamente controlada pelo conjunto dos indivíduos que a compõem – nos marcos de um modo de produção regido pela cega lei da acumulação de capital, com sua racionalidade “instrumental”, como bem definiram Adorno e Horkheimer. Logo, se há alguma razão no capitalismo, ela é contraditoriamente incapaz de promover a emancipação humana que o iluminismo propunha. Contudo, inclusive porque conscientes dessa contradição, não há porque abandonar por completo aquele ideal civilizatório, naquilo que ele apresenta de progressista (o próprio comunismo marxiano, diga-se, se inscrevia nessa perspectiva).

Fiz esse pequeno preâmbulo apenas para reforçar que, nesse momento, o Brasil tem se encaminhado na contramão do desejável para o estabelecimento de um novo patamar de civilização. Com efeito, temos vivido um processo, não de busca pela Razão, mas de fortalecimento do que poderíamos chamar de “desrazão”. O aumento do ódio e da intolerância, o bloqueio ao diálogo, a incapacidade de reflexão, e a confusão entre justiça e vingança prevalecem. A aprovação, nesta quarta-feira, da PEC da redução da maioridade penal é (mais) um evidente exemplo do irracionalismo proto-fascista que tomou conta da sociedade brasileira no último período. Não que esta irracionalidade não existisse antes. Pelo contrário, ele sempre esteve aí, sob vestes variadas: na conservação de uma desigualdade obscena, nos múltiplos preconceitos, na violência simbólica... Mas, nos últimos tempos, essa “desrazão” ganhou ainda mais força e eco. Deixou de ser algo quase exclusivamente exercido por uma parcela (ainda que a parcela dominante) da sociedade e se capilarizou por todos os segmentos.

De fato, quando a esmagadora maioria da população acredita – e acredita mesmo – que a solução para o problema da violência no Brasil é abarrotar ainda mais um sistema carcerário falido, que já opera acima de sua capacidade e é incapaz de recuperar quem quer que seja; quando essa população se nega a considerar argumentos e estatísticas que provam a ineficácia de uma medida como a da redução da maioridade penal (e os riscos que ela carrega de modo subjacente); e ainda aplaude a aprovação dessa medida a partir de um golpe em nossa própria democracia; só podemos concluir que a razão perdeu. A justiça foi substituída pela vingança. O respeito pelo ódio. O diálogo pela força. O pensamento pela irreflexão. Ao fim e ao cabo, o que a maior parte dos deputados fez, nesta quarta-feira, após a violação regimental (mais uma!) empreendida por Eduardo Cunha*, nada mais foi do que exprimir a irracionalidade que perigosamente atravessa nossa sociedade e ameaça, como nunca, nossa claudicante democracia.

PS: como postei nas redes sociais, após o ocorrido na noite de ontem, sugiro essa nova redação do Artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal: "Todo o poder emana do Cunha, que o exerce por meio de repre$entante$ eleito$ ou diretamente, nos termos que bem lhe aprouver”.

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