domingo, 29 de maio de 2016

Vivemos um "estado de exceção"? Considerações a partir de Agamben

Uma das pautas que se impõe atualmente na política brasileira, intensificada após o afastamento da presidenta Dilma, é a de que estaríamos vivendo em um “estado de exceção”, no qual direitos e garantias constitucionais estariam sendo aplicados (ou não) de forma discriminatória. Para ajudar nessa discussão, é útil recuperar a tematização proposta pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, que deu novo fôlego na contemporaneidade no tratamento da exceção.

Publicado em 2003, na esteira das primeiras movimentações do governo norte-americano após 11 de setembro, Estado de exceção se inscreve na perspectiva do projeto  de setembro, Homo sacer, iniciado na década de 1990, no qual se trata de rediscutir a biopolítica de Michel Foucault através de um cruzamento original dos pensamentos de Hannah Arendt e da Escola de Frankfurt (notadamente, Walter Benjamin). Como ponto de partida, Agamben adota a ideia do Direito como mecanismo que defende e ameaça a vida concomitantemente. Em Estado de exceção, particularmente, trata-se de reconstruir o conceito jurídico-político que dá título à obra, definindo o estado de exceção como uma zona de indistinção que está simultaneamente dentro e fora do direito. A vida humana, neste caso, é capturada como mera “vida nua”. Ou seja, na suspensão do direito, a vida fica desprotegida como pura vida natural, não pertencendo mais às pessoas, mas à vontade, ao arbítrio do soberano, que tem o poder de suspender os direitos e, como consequência, a ordem jurídica.

Aqui, Agamben recupera um debate conceitual entre Carl Schmitt, jurista alemão partidário do nazismo, e Walter Benjamin – cuja morte se deveu exatamente à perseguição nazista aos judeus. Para Schmitt é o soberano quem decide sobre o estado de exceção, na medida em que se encontra incluído no direito a sua própria suspensão. Ou seja, o estado de exceção se inscreve no contexto jurídico, conquanto sua efetivação implique na “suspensão de toda ordem jurídica”. Nas palavras de Schmitt, “o estado de exceção é sempre algo diferente da anarquia e do caos e, no sentido jurídico, nele ainda existe uma ordem, mesmo não sendo uma ordem jurídica”.

Benjamin, por seu turno, inverte a concepção de Schmitt. Não se trata de uma decisão do soberano aplicá-lo, mas evitá-lo, pois, segundo o autor, “quem reina já está desde o início destinado a exercer poderes ditatoriais num estado de exceção, quando este é provocado por guerras, revoltas ou outras catástrofes”. Nesse sentido, cumpre relembrar a VIII tese sobre a história, escrita em 1940 – que será importante para o entendimento de Agamben – na qual Benjamin proclama: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerando como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável”.

Para Agamben, o estado de exceção é uma zona de indistinção, ou seja, não é nem exterior, nem interior ao ordenamento jurídico. Assim, o problema de sua definição encontra-se, justamente, em uma esfera de indiferença em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam. Destarte, suspender a norma não implica em sua anulação, ao passo que a zona de anomia, indeterminação, não é destituída de relação com a ordem jurídica.

Com efeito, o estado de exceção é um vazio de direito porque é um “espaço anômico onde o que está em jogo é uma força-de-lei sem lei”, portanto, força-de-lei. Trata-se, segundo Agamben, de “um estado da lei em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem força) e, em que de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua força é essa indefinibilidade e a esse não-lugar que responde a ideia de uma força-de-lei. [...] a força-de-lei, separada da lei, o imperium flutuante, a vigência sem aplicação e a ideia de uma espécie de ‘grau zero’, são algumas das tantas ficções por meio das quais o direito tenta incluir em si sua própria ausência e apropriar-se do estado de exceção, ou, no mínimo, assegurar-se uma relação com ele Assim, consequentemente, o estado de exceção se configura como um espaço de indistinção que conjuga o vazio de direito no espaço anômico, como um vazio e uma interrupção do direito. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, uma zona de indiferença capturada pela norma, de modo que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se, dá lugar à exceção”.

Em outras palavras, o estado de exceção é “a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força-de-lei (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referencia real”.

Recuperando a intuição de Walter Benjamin, Agamben defende que o estado de exceção, enquanto paradigma de governo, tem se tornado regra nas instituições políticas contemporâneas. Nesse sentido, o filósofo assinala o paradoxo da soberania (a exceção como regra), o investimento na vida pelo poder (o biopoder), e a falsa universalidade do projeto moderno (principalmente com relação aos diretos humanos e à liberdade). A partir dessas considerações, Agamben visa entender o movimento que leva a excepcionalidade como um mecanismo de suspensão da ordem jurídica tornar-se um paradigma de governo eminentemente presente na política contemporânea – inclusive nas democracias mais avançadas.

Assim, diante da necessidade de responder a uma situação de emergência qualquer (política, militar, econômica), os governos (mesmo os democráticos) adotam uma série de medidas de cunho totalitário, sob a justificativa de que tais medidas serviriam para proteger o Estado e suas instituições. Por conseguinte, estes argumentos confeririam caráter jurídico às situações não contempladas ou sequer previstas pela normalidade constitucional.

À luz dessas considerações, é possível afirmar que o Brasil vive um estado de exceção? Creio que a resposta seja: parcialmente, sim. Afinal, se não vivemos um momento de suspensão completa do direito, das garantias individuais etc., há em curso um processo que, a meu ver, atesta a legitimidade daquela hipótese.

É preciso esclarecer: para além de quaisquer julgamentos acerca da política econômica ou outras decisões tomadas pelo governo Dilma, houve, nos últimos anos, um fator de desestabilização da ordem política brasileira, a Operação Lava Jato, a partir da qual aquele estado de exceção começou a se desenhar. Ora, como os áudios divulgados nos últimos dias reforçam, essa tem sido a grande preocupação da classe política nacional, de um espectro a outro. Mas, vale lembrar que, inicialmente, a Lava Jato estava claramente destinada a enfraquecer ou mesmo extinguir um grupo político específico – basta ver sua circunscrição aos governos petistas, quando se sabe tratar-se de um problema muito mais antigo, o que já é um prenúncio de um estado de exceção. Contudo, a partir de certa altura, ela parece ter saído do controle, exigindo uma intervenção direta do centro do poder para sua detenção. Diante da recusa de Dilma em participar – ao menos, no grau esperado – desse conluio, a solução foi aplicar a ela o processo de impeachment, sob qualquer pretexto minimamente contemplado no texto constitucional (exatamente para que não se configurasse a ideia de golpe e, portanto, de excepcionalidade). A partir desse momento, o que se tem é a propagação de ideias e movimentos destinados a criar um contexto de insegurança jurídica e intensificação de perseguições (especialmente pelo mau uso do mecanismo de delação premiada), com o intuito de reverter os estragos políticos das investigações em curso, redimensionando-as à esfera previamente estabelecida, isto é, o governo Dilma, Lula e o PT.

Diante disso, cabe indagar: será possível retornar a esse status quo ante? Pessoalmente, duvido. A percepção de que o desenrolar do presente nos encaminha  para um estado de exceção pleno – no qual o arbítrio extrapole ainda mais os atuais limites, ainda que sob roupagem “democrática” – é cada vez mais nítida. E a própria dinâmica da realidade parece se opor – e se impor – àqueles que desejavam apenas “acabar com a raça da esquerda”.


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