domingo, 26 de julho de 2015

Rousseau, o contrato social e a democracia no Brasil

Embora seja um dos mais célebres expoentes do Iluminismo, o genebrino Jean-Jacques Rousseau não compartilhava uma das características mais marcantes de seus contemporâneos das Luzes: o otimismo no progresso moral dos seres humanos. Pelo contrário, partindo da hipótese de que a sociabilidade teria eliminado a pureza de sentimentos do homem natural, Rousseau lê a história da humanidade como uma história de queda.

Com efeito, no Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens, Rousseau delineia seu pensamento a partir um hipotético estado de natureza, marcado pela paz e pela tranquilidade. Neste momento, o homem primitivo era feliz porque vivia de acordo com as suas necessidades inatas, em estado de liberdade e igualdade em relação a todos os outros. Era o “bom selvagem”.

Nesse sentido, de acordo com Rousseau, o ser humano é naturalmente um ser solitário, dotado de um instinto de auto-preservação, de um sentimento de compaixão por seus semelhantes, e potencialmente racional. Ademais, possui outras duas características que o distingue dos outros animais: a já mencionada liberdade – poder fazer tudo aquilo que suas forças permitirem –; e a perfectibilidade – isto é, a capacidade de aperfeiçoar-se, de superar seus próprios limites. Ora, é justamente esta capacidade natural que o conduz para além do estado originário.

Por conta desta tendência ao aperfeiçoamento, os indivíduos começam a se associar com o intuito de melhor dominar a natureza e, com isso, se estabelecem os primeiros agrupamentos. Com eles, surgem a inveja, a discórdia e a desconfiança. Ao mesmo tempo em que aprofundam o desenvolvimento das técnicas, criando atividades tais como a agricultura e a metalurgia, os seres humanos veem sua bondade natural ser corrompida. Sem leis e sem juízes reconhecidos, ou seja, guiados apenas por sua própria consciência, não há entendimento possível entre os homens e a situação torna-se caótica. A vida social é, então, marcada por uma verdadeira guerra de todos contra todos.

O ponto de inflexão desse processo histórico, porém, é o surgimento da propriedade privada. Com efeito, em Rousseau, a sociedade é o reino da desigualdade instituído pela propriedade privada. A partir daí, os seres humanos precisariam estabelecer leis para se protegerem: uns para preservarem suas propriedades e outros para se resguardarem das arbitrariedades dos mais poderosos. Ao menos, é o que estes últimos pretendiam. Na verdade, diz Rousseau, eles foram ludibriados pelos primeiros. Com o surgimento da sociedade civil, o que ocorre, de fato, é a perpetuação da divisão social entre ricos e pobres, através de um pacto ilegítimo.

À luz deste cenário, se ilumina a proposta da grande obra rousseauniana, o Contrato social. Ali, trata-se de entender como os homens, que nascem livres e iguais, tornaram-se escravos de alguns poucos poderosos. E para compreendê-lo, o filósofo propõe uma nova forma de sociabilidade entre os indivíduos, um novo “contrato”. Este pacto daria luz a um estado civil capaz de superar (ou minimizar) a desigualdade social consolidada pelo aparecimento da propriedade privada.

Assim, a meta do Contrato social é estabelecer uma livre associação de seres humanos inteli­gentes e capazes que se decidem por formar outro tipo de socieda­de, não mais baseada na guerra de todos contra todos, mas sim, na vontade geral e na soberania do povo. Desse modo, os homens permaneceriam, por força de sua vontade, livres e iguais.

Com efeito, a ideia de Rousseau é propor uma forma de poder legítimo, que não pressupõe uma volta ao estado de natureza para rever­ter o quadro de desigualdade instalado. A associação civil deve ser estabelecida de tal modo que o interesse de cada indivíduo seja levado em conta, o que só é possível em um modelo de formação social e política legítimo, isto é, no qual a liberdade e a igualdade estejam virtuosamente articuladas. Desse modo, com o novo contrato, a liberdade natural, que só conhecia limites nas forças do próprio indivíduo, é abandonada em favor da liberdade civil, cujo limite é estabelecido pela vontade geral. A vontade geral, com efeito, é aquela que dá voz aos interesses que cada pessoa tem em comum com todas as outras. Não se trata, convém notar, da mera soma das vontades particulares, mas de um substrato comum a todas as vontades individuais.

Por consequência, a liberdade garantida pelo contrato é uma liberdade mais plena, racional, que se distribui igualmente pelo corpo político, e que só se efetiva no âmbito social. Neste estágio, o povo é, ao mesmo tempo, quem formula e quem está submetido às leis. Numa palavra, a liberdade é a autonomia, o poder e o direito de criar as leis que deverá obedecer. A partir do momento que o homem aceita a autoridade da vontade geral ele passa a pertencer a um corpo coletivo, ou seja, a uma sociedade, seguindo os desígnios de sua razão e cons­ciência, adquirindo liberdade de pensar e de respeitar as leis que ele mesmo prescreveu para si e para toda a comunidade da qual faz parte.

Com isso, Rousseau fundamenta as bases de um estado democrático. Não ao modo da antiga democracia grega, o que seria impossível nas condições atuais, no qual a alienação dos direitos naturais acontece em favor da sociedade inteira entendida como um corpo político unitário – unidade essa que se materializa na vontade geral.

Enfim, no estado civil rousseauniano, o povo tem o poder sobera­no, e o corpo administrativo do estado (inclusive o governante) é funcionário deste sobe­rano, o qual está submetido e limitado pelo poder do povo. Em outras palavras, o governante é apenas um representante da soberania popular (mesmo em uma monarquia, por exemplo).

As ideias de Rousseau tiveram grande impacto nas concepções políticas do Ocidente. Por exemplo, o Artigo 1º da Constituição Brasileira, em seu parágrafo único, diz expressamente, ecoando o ideal de Rousseau: “Todo poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Contudo, sabemos que as coisas não se passam bem assim – como a tirinha da Mafalda acima ilustra. De fato, embora vivamos em um regime que, em aspectos essenciais, é inegavelmente democrático, não é despropositado observar que a democracia brasileira ainda parece distante de encerrar a virtuosa articulação entre liberdade e igualdade estabelecida por Rousseau como pilar de uma associação legítima. Nesse sentido, se aceitamos a tese forte do filósofo genebrino (a soberania popular como única fonte de legitimidade do estado civil), podemos pensar em duas grandes causas para este distanciamento entre teoria e realidade.


Em primeiro lugar a crescente – e crescentemente nefasta – interferência do poder econômico sobre os interesses públicos. Tal interferência atualmente se expressa, em especial, na participação empresarial no financiamento das campanhas eleitorais, e constitui, a meu ver, o núcleo dos problemas políticos brasileiros. Afinal, o financiamento privado “amarra” os eleitos às empresas financiadoras, fazendo com que as demandas coletivas sejam frequentemente sufocadas pelos interesses particulares daqueles setores. Por conseguinte, a soberania popular é anulada em detrimento do poder do capital, distorcendo, no mesmo gesto, a ideia de representatividade, tão cara a qualquer democracia.

A percepção dessa situação – expressa em frases comumente ouvidas, tais como, “os políticos só governam para os ricos”, “ninguém se interessa pelo povo” etc. – conduz à segunda grande causa daquele distanciamento indicado no parágrafo anterior: a alienação de grande parte da população em relação aos rumos do país. Não que esta alienação seja fruto exclusivo da primeira causa. Mas, a ingerência do poder econômico não apenas distorce a representatividade e a busca pelos interesses em comum, como também exclui a parcela majoritária da população da dinâmica de funcionamento da política. A soma destes fatores conduz a um descrédito inevitável. Com isso, porém, amplia-se o desinteresse popular pela política (logo, por sua própria liberdade) e, consequentemente, em um círculo vicioso, o poder dos mais privilegiados (que jamais deixam de ocupar da política, convém sempre lembrar) é ainda mais reforçado, aumentando ou perpetuando a desigualdade social.

Enfim, se a essência da democracia, tal como observou Rousseau, é a soberania popular, não é errado dizer que estamos longe ainda de constituir uma democracia efetiva no Brasil. Isto é, uma sociedade na qual todos sejam verdadeiramente iguais e livres, artífices da vida em comum. Embora passos importantes tenham sido dados nesse sentido nos últimos tempos, o caminho a trilhar ainda é longo – e, pelos últimos acontecimentos de nossa vida política, mais tortuoso do que se poderia supor.

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