terça-feira, 17 de agosto de 2010

O amor e a filosofia

Hoje, Angelica e eu completamos três anos juntos. Em homenagem a essa data tão especial, segue um texto falando um pouquinho sobre o amor de uma perspectiva filosófica. Dedico a ela este post. Afinal, foi quem me fez descobrir  o verdadeiro sentido do amor.



“O amor é quando a gente mora um no outro”
Mário Quintana


Amor...quão nobre sentimento, tão indefinível, tão contraditório, tão essencial! E como não poderia deixar de ser, muitas são as visões sobre o amor que perpassam a história da Filosofia. A primeira grande abordagem do tema foi realizada por Platão, no seu célebre diálogo O banquete. O filósofo define o amor como um princípio cósmico, uma escada com sete degraus, que vão do amor por uma pessoa, passando pelo amor por todas as formas belas, ao amor pelas práticas belas, até o amor pelas realidades superiores do universo, isto é, o amor pela Beleza em si.

Através da personagem de Sócrates, um dos convidados do banquete, Platão diz o seguinte: “O que deseja, deseja aquilo que lhe falta, (...) e se não sentir falta, não sente também desejo”. Isto é, só desejamos (e amamos) aquilo que não temos. Embora o objeto do amor esteja sempre ausente, ele sempre é solicitado. O amor é sempre relativo a algo, nunca é absoluto. Sendo o Amor, amor daquilo que nos falta, ele não é nem belo nem bom, visto que o Amor, para Platão, sempre aspira ao Belo e ao Bem.

A seguir, Sócrates narra a seguinte história, que lhe foi contada pela sacerdotisa Diotima de Mantinéia, sobre a origem de Eros (o Amor). Ela diz que Eros é um intermediário entre o humano e o divino. Ele é o responsável por fazer os homens se comunicarem com os deuses e vice-versa. É uma espécie de mensageiro, nascido da união de Engenho e Pobreza. A história é a seguinte: “Quando Afrodite nasceu, os deuses reuniram-se num festim onde, entre vários outros, se encontrava o Engenho, filho da Sabedoria. Depois de jantarem, eis que aparece a Pobreza a mendigar os restos – como é usual em ocasiões de festa... – e ali ficou, junto à porta. Entretanto o Engenho, já embriagado de néctar, foi para o jardim de Zeus, e tão pesado se sentia, que adormeceu. Então a Pobreza, que na sua natural indigência meditava ter um filho do Engenho, deitou-se junto dele e assim concebeu o Amor. Eis a razão porque o Amor nos surge como companheiro e servidor de Afrodite: concebido nas festas em honra do seu nascimento, é, por natureza, um apaixonado do Belo, pois que Afrodite é bela. Por outro lado, a condição de filho do Engenho e da Pobreza ditou-lhe o seu destino. Condenado a uma perpétua indigência, está longe do requinte e da beleza que a maior parte das pessoas nele imagina... Rude, miserável, descalço e sem morada, estirado sempre por terra e sem nada que o cubra, é assim que dorme, ao relento, nos vãos das portas e dos caminhos: a natureza que herdou de sua mãe faz dele um inseparável companheiro da indigência. Do lado do pai, porém, o mesmo espírito ardiloso em busca do que é belo e bom, a mesma coragem, persistência e ousadia que fazem dele o caçador temível, sempre ocupado em tecer qualquer armadilha; sedento de saber e inventivo, passa a vida inteira a filosofar, este hábil feiticeiro, mago e também sofista [aqui, no sentido de sábio – V.S.]”.

Estátua de Eros, o deus do amor na mitologia grega
Há, em Platão, uma importante distinção entre um amor “egoísta”, que persegue o outro como um objeto a devorar (quando “o amante ama o amado como o lobo ama o cordeiro”, nas palavras de Platão) e o amor verdadeiro, que é capaz de nos conduzir à posse eterna do Belo e do Bem. Este último amor, para o filósofo grego, concorre com o desejo de imortalidade do homem. Segundo Platão, todo homem tem o desejo de ser imortal. E, para tanto, utiliza-se de meios variados, como a realização de obras que ficarão para a posteridade, ou a procriação, isto é, a tentativa de prolongar a existência através da pessoa amada.

A tradição filosófica seguirá, em linhas gerais, a oposição entre o amor e o egoísmo, ou entre um amor-ativo (altruísta) e um amor-passional (egoísta). Darei apenas dois exemplos.

No século XVII, Espinosa, filósofo racionalista, determinará que a maior virtude do homem é o desejo de conservar-se em seu ser, isto é, de conservar sua existência. Nesse sentido, define a alegria como o sentimento que temos de que nossa capacidade de existir aumentou. E o amor é quando atribuímos esse aumento a uma causa externa, isto é, ao objeto do nosso desejo, à pessoa amada. Quer dizer, o amor é o afeto da alegria, como percepção da ampliação de nossa força para ser, agir e viver ativamente. Contudo, ressalva Espinosa, por se tratar de uma inevitável paixão, há sempre o risco de nos tornarmos servos dela. Daí que, para o filósofo, é necessário que o poder da razão possa, refletindo sobre as causas reais e o sentido verdadeiro de nossa vida afetiva, impedir que sejamos dominados por paixões incontroláveis. Apenas assim, teremos nossa alma livre e, por conseguinte, perceberemos que nossa força para existir e agir aumenta quando existimos e agimos com outrem. Igualmente, estaremos aptos a buscar a felicidade suprema, qual seja, nos sentirmos partes integrantes e ativas da Natureza infinita.

Por outro lado, Sartre afirma que, não obstante ser possível amar de várias maneiras, a principal forma de amor (ao menos atualmente) é aquela que ele define na expressão “amar é querer ser amado”. Para o filósofo, isto ocorre quando o amante deseja ser o “mundo inteiro” do amado, ocupar toda sua vida, ser o motivo de sua existência. Esse tipo de amor, naturalmente, está fadado ao fracasso, porque invade completamente a liberdade do outro (é o amor que visa os interesses de apenas um dos amantes).

Com efeito, e sem querer me prolongar em demasia, o fato é que há muito o que se discutir sobre o amor. Ainda mais nesse “tempo de homens partidos”, como dizia Drummond. Aqui, trouxe, muito superficialmente, o que alguns filósofos pensaram sobre o amor. Há muito mais a ser explorado. Vale notar, por exemplo, que, não obstante associarmos frequentemente o amor ao amor entre duas pessoas, há, claro, outros objetos importantes de amor (por exemplo, a própria Filosofia nasce como “amor ao saber”). Quem sabe, dê para retomar o tema em outra oportunidade. Por enquanto, há algumas considerações pessoais que gostaria de compartilhar com vocês.

O romancista francês Antoine de Saint-Exaupéry disse que “amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direção”. Concordo. O amor é quando nos sentimos, parafraseando Mario Quintana, morando no outro. Não de maneira evasiva, ou porque nós assim exigimos (como no caso mais comum descrito por Sartre), mas de maneira solidária, cúmplice, porque partilha do desejo do outro. Não há amor sem cumplicidade. O próprio Sartre entendia que o amor autêntico requer, como condição dessa cumplicidade, a inexistência de segredos entre os amantes – o que implica em aceitar, reciprocamente, a liberdade do outro, sem, ao mesmo tempo, deixar-se dominar por ela. Claro, isso não é tarefa fácil. Ainda mais porque vivemos em uma época na qual, desde cedo, somos ensinados a colocar nossos interesses, nossos desejos e nossas ambições acima de tudo. Mas, creio que seja preciso sempre caminhar na direção contrária. Somos seres humanos, partilhamos um mesmo mundo, e precisamos de outras pessoas, precisamos estar com elas, precisamos sentir aquela alegria que só temos quando vemos que a(s) pessoa(s) que amamos também está(ão) feliz(es). Por isso, acho que, em uma sociedade como a nossa, amar é uma verdadeira resistência. É um dizer não ao individualismo e ao egoísmo que o mundo apregoa. Porque o amor é incompatível com a lógica do lucro, com a luta pela sobrevivência, com a guerra, com tudo aquilo que vivenciamos cotidianamente. Daí que, coletivamente, não penso que somos felizes. Dentre outras coisas, porque temos pouca chance de amar. Amor requer solidariedade, generosidade, entrega, respeito. Para mim, é esse amor descompromissado, autêntico, que nada exige em troca, o caminho para a felicidade, tal como Espinosa a entendia. 

Bem, termino esse texto, com as belas e precisas palavras do romancista e filósofo francês Albert Camus, que definiu tão bem o que eu tentei dizer acima: “não ser amado é falta de sorte, mas não amar é a própria infelicidade”.

Se alguém se interessar pelo tema, sugiro:

PLATÃO. O banquete. Edições 70 (há outras em português).


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