segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O que a filosofia tem a nos dizer sobre a morte?

“E de repente ficou claro para ele que aquilo que o estava oprimindo, e que parecera não querer deixá-lo, agora esvanecia-se por todos os lados. Sentiu-se cheio de pena por eles, deveria fazer alguma coisa para tornar-lhes isso tudo menos doloroso, libertá-los e libertar-se desse sofrimento. ‘Tão certo e tão simples’, pensou. ‘E a dor? O que foi feito da dor? Onde está você, dor?’.
Pôs-se a esperar por ela. Ficou esperando.
‘Sim, aqui está. Bem...e daí?. Deixe que ela venha. E a morte, onde está?’
Procurou seu antigo medo da morte e não o encontrou. ‘Onde está? Que morte?’ Não havia medo porque também não havia morte.
Em seu lugar havia luz.
‘Bem, então é isso!’, exclamou em voz alta. ‘Que bom!’ (...).
- Acabou! – disse alguém perto dele, o que ele repetiu dentro de sua alma.
‘A morte está acabada’, disse para si mesmo. ‘Não existe mais’”.

(Leon Tolstoi, A morte de Ivan Ilitch)



Tratar da morte é sempre um assunto muito delicado. Em geral, as pessoas buscam fugir desse tema, como se fosse algo que nada tem a ver com elas. Quer dizer, em geral, evita-se a discussão sobre sua própria morte. Basta ligar a TV para vermos que a morte alheia é um assunto que desperta grande interesse do público, especialmente quando ela ocorre de maneira, digamos, pouco usual. Mas, voltando ao nosso ponto, é fácil, por exemplo, encontrarmos pessoas mais supersticiosas, para quem falar de sua morte pode “atraí-la” ou, ao menos trazer “maus fluidos”. É preciso, porém, pensar por outro prisma. O que a filosofia pode dizer sobre a morte? Antes de tudo, que ela é, basicamente, um acontecimento simbólico, dotado de significação e sentido – cada sociedade, cada época a tratam de um determinado modo. Além disso, se pensarmos em termos individuais, a morte é apenas a descoberta de nossa incontornável finitude, de nossa temporalidade e de nossa identidade, o momento em que nossa realidade humana deixa de ser-no-mundo, isto é, deixa de existir.

O filósofo estóico Sêneca dizia que compreender a morte é essencial para “bem viver”. Em seu tratado Sobre a brevidade da vida, ele afirma que, justamente porque não entendem o fato da morte, os homens não sabem usufruir de sua vida. Reclamam da falta de tempo, da brevidade da existência, mas não se dão conta de que isso ocorre porque desperdiçam a maior parte dela. Diz ele que “a vida, se bem empregada, é suficientemente longa (...) não temos uma vida breve, mas fazemos com que seja assim”. De acordo com o ideal de vida estóico, a vida bem vivida é, resumidamente, aquela livre do jugo das paixões, das agitações das ocupações diárias, uma vida contemplativa, de elevada harmonia com a Natureza (em uma passagem, por exemplo, diz Sêneca: “quando vires, com freqüência, uma toga pretexta ou um nome célebre, no foro, não tenhas inveja, já que essas coisas se obtêm a custo da própria vida”). Segundo o filósofo, ocorre que os homens, no fundo, acreditam serem imortais, e perdem sua vida se ocupando de coisas sem real importância, crendo que, num futuro que nunca chega, encontrarão a paz, o descanso e a felicidade. Daí afirmarem que a vida é breve. Para se “viver bem”, é preciso, justamente, dirimir essa ilusão – papel que, para Sêneca, cabia à Filosofia.

Michel de Montaigne, filósofo cético do século XVII, e nesse ponto bastante próximo a Sêneca, atestava: “Qualquer que seja a duração de nossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na quantidade de duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante”. E prosseguia: “Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e coação”.

No que diz respeito à filosofia contemporânea, sobretudo aquelas ocupadas com temas existenciais, as questões da finitude humana, e consequentemente, da morte, ganharão grande destaque. Para Heidegger, por exemplo, porquanto somos seres sempre lançados para o futuro, é inevitável que nos ocupemos de nossa própria morte. Para esse filósofo, “a morte é a possibilidade mais própria, irremissível, certa e, como tal, indeterminada e insuperável” de nossa realidade humana. Morrer é um ato solitário (é nossa possibilidade mais própria). Quem morre vai só, ninguém pode morrer por outrem (ela é irremissível). Aos que ficam, resta apenas a dor da perda e a saudade. É verdade, observa Heidegger, que no cotidiano, buscamos mascarar essa situação, buscamos fugir da angústia implicada em nossa realidade de seres-para-a-morte, e agimos como se ela não nos dissesse respeito. Em geral, dizemos, ou pensamos: “um dia vou morrer, mas não será agora”. Na perspectiva heideggeriana, é preciso recuperar a verdadeira dimensão da morte, assumi-la como minha possibilidade mais própria, viver essa verdade, autenticamente, sem medo (porque, embora indeterminada, ela é certa e insuperável). Apenas assim, poderemos usufruir de nossa liberdade, dar a nossa existência um sentido mais próprio, uma significação que ela, a princípio, não tem. Numa palavra, sem medo da própria morte, tornamo-nos senhores de nossa vida, e, por conseguinte, ampliamos o exercício de nossa liberdade.

O escritor André Malraux, dizia que “o trágico da morte, é que ela transforma a vida em destino”. Enquanto não morrermos, porém, teremos um futuro sempre aberto. Somos seres temporais, lançados no mundo, e mudamos a todo instante. Nossa morte sela nosso destino para sempre. Mas ela é uma contingência (ou, como disse Heidegger, indeterminada). Há nisso um caráter de absurdo, talvez, como afirma Sartre, justamente por não sabermos quando ela chegará. De qualquer forma, até que esse acontecimento nos atinja, é preciso viver (isto é, criar) nossa vida livre e intensamente, sem nos preocuparmos com o tamanho de sua duração. E, dentre outras coisas, isso implica em deixarmos de tratar a nossa morte como algo alheio, distante, ruim, e a encararmos sem receio, como um acontecimento estritamente nosso – o mais particular e mais próprio de todos, o último ato de nosso ser-no-mundo, de nossa existência.

Bem, antes que isso descambe para algum tipo de auto-ajuda, termino esse texto retomando estas belas e profundas palavras de Montaigne: “é preciso aprender a morrer para saber viver”.

*Quem quiser se aprofundar no tema, sugiro, antes de tudo, ler a maravilhosa novela A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi, que abre este texto. Poucos trataram o tema da morte (e, consequentemente, da vida) tão bem quanto o escritor russo.

Em termos de filosofia, há, por exemplo:

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo, ed. Vozes (sobretudo § 46-53);
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios, Martins Editora.
SÊNECA. Sobre a brevidade da vida, ed. L&PM.

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