terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O corpo próprio em Merleau-Ponty

O corpo próprio é o pilar da filosofia de Merleau-Ponty. Seja na sua Fenomenologia da percepção ou em sua última ontologia, esboçada em O visível e o invisível, o corpo é quem abre o caminho, na filosofia merleau-pontyana, de se superar os impasses ocasionados pelas filosofias da consciência (isto é, aquelas filosofias que estabelecem a consciência ou a subjetividade como ponto de partida).

O primeiro ponto a destacar é que o corpo de que falamos, nosso corpo, não é aquele de que fala as ciências positivas. De fato, nosso corpo próprio, tal como o vivenciamos, não é uma coisa, um objeto de estudos das ciências positivas, não é um feixe de ossos, músculos e sangue, não é uma rede de causas e efeitos, não é o suporte para uma alma ou para uma consciência. Todas essas características, diz Merleau-Ponty, são projeções que fazemos a posteriori em relação ao corpo. Quer dizer, não o vivenciamos desse modo, não nos comportamos assim em relação a ele. Nosso corpo próprio, para-nós, é a forma de nossa imersão no mundo, o modo fundamental de sermos e estarmos no mundo, de nos relacionarmos com ele e ele conosco. Nosso contato primeiro com o mundo é sensível, e isso só é possível porque somos um corpo, porque compartilhamos, com ele, de uma mesma carne.
Henri Matisse, Nu azul.

Nosso corpo tem uma característica especial. Quando, por exemplo, seguro minha mão esquerda com minha mão direita, percebo que há em meu corpo certa reflexão; a mão que toca e a mão tocada podem se alternar em seus papéis. Há reversibilidade. Meu corpo, portanto, é táctil e tocante. O mesmo ocorre com os demais sentidos. Meu corpo é um ser visível, em meio a uma infinidade de outros seres visíveis, mas com essa peculiaridade: ele também é vidente. Vejo, mas também posso ser visto. Inclusive, sou visível para mim. Meu corpo é sonoro, mas também pode se fazer ouvir e pode ouvir-se quando emite sons. Ouço quando falo e ouço quem me fala. Sou sonoro para mim mesmo e para outrem.

Por isso, quando percebemos um corpo, um gesto, uma expressão, uma fisionomia, podemos nos reconhecer neles, reconhecer que ali há um outro, cujo corpo é semelhante ao meu e que, portanto, me é compreensível e comunicável, tal como sou para ele.

Há ainda uma outra característica de nosso corpo próprio: a possibilidade que ele tem de se “dilatar”, expandir seus limites de percepção e atuação para além do estabelecido por nossa anatomia. Vejamos esse exemplo de Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção: “Uma mulher mantém sem cálculo um intervalo de segurança entre a pluma de seu chapéu e os objetos que poderiam estragá-la, ela sente onde está a pluma, assim como nós sentimos onde está nossa mão. Se tenho o hábito de dirigir um carro, eu o coloco em uma rua e vejo que "posso passar" sem comparar a largura da rua com a dos pára-choques, assim como transponho uma porta sem comparar a largura da porta com a de meu corpo”. Nesse sentido, prossegue o filósofo, habituar-se a usar um chapéu, ou um carro, “é instalar-se neles ou, inversamente, fazê-los participar do caráter volumoso de nosso corpo próprio. O hábito exprime o poder que temos de dilatar nosso ser no mundo ou de mudar de existência anexando a nós novos instrumentos”.

Em suma, é pelo corpo, pelos sentidos, que temos nosso contanto originário com o mundo, que podemos nos sentir parte dele, e nos comunicarmos tanto com ele quanto com os outros seres. A intersubjetividade, portanto, é sustentada por uma intercorporeidade fundamental, por um verdadeiro “diálogo” inter-corpos (se pensamos em relação à sexualidade, por exemplo, pode ficar mais fácil de entender como nossos corpos, durante os momentos de sedução, desejo e do próprio ato sexual, parecem comunicar-se entre si, sem intervenção de uma “consciência”). É pelo corpo, enfim, que em seus últimos escritos – dos quais destacamos Signos e O visível e o invisível – que Merleau-Ponty visa superar a antiga clivagem sujeito-objeto, consciência-mundo, buscando nesse contato primitivo, anterior a toda tematização, a toda idealização, uma nova proposta de ontologia, que não foi concluída por conta de sua morte prematura: uma ontologia do sensível.

Para quem se interessar:

MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção (Ed.Martins Fontes), sobretudo a Primeira Parte.

________________. O visível e o invisível (Ed. Perspectiva).

8 comentários:

  1. Muito interessante suas reflexões, sou adepto da fenomenologia Merleau-Pontyana e gostei muito da forma como colocou um tema complexo para fenomenologia apontando o que é o corpo e sua representação no mundo... parabéns!

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  2. Muito bom Vinícius ... Ainda sobre Corpo Próprio, Prof. Danilo de Manno de Almeida, coloca-o como "hábito primordial". Está em seu livro: Corpo em Ética - pela Ed. Metodista.

    Abçs Antonio Simões

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  3. Obrigada! Está me reapresentando a um autor com quem andei paquerando há uns 20 anos atrás! Ele me assustou - quer dizer, a Filosofia da Percepção me assustou. Acho que agora sou mais madura pra entrar ali.

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  4. De muita ajuda para minha apresentação no congresso da educação, muito obrigada!

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